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sábado, 22 de dezembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 21)

 NO PERÍODO DO REGIME MILITAR




        O Cesit - Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, anexo à cadeira de Sociologia I, do professor Florestan Fernandes (1920-1995), dirigido pelo professor Fernando Henrique Cardoso, estava em fase de ampliação do número de projetos de pesquisa. Isso foi aí pelos fins de 1962, início de 1963. Na ampliação, um dos objetivos era incorporar a educação como tema de pesquisa associado aos projetos já em andamento, sobre o empresariado, o operariado e o Estado, relativos ao desenvolvimento econômico e social. Para ampliar o número de pesquisadores, foi convidado o professor Luiz Pereira, formado em Pedagogia, e não em Ciências Sociais, que havia sido aluno de Sociologia do professor Florestan e com ele fizera mestrado em Sociologia e, depois, o doutorado, na mesma semana em que Fernando Henrique e Octavio Ianni (1926-2004) fizeram os seus doutorados. Por indicação de Florestan, Luiz Pereira era professor de sociologia na Faculdade de Filosofia de Araraquara, então um instituto isolado da Secretaria da Educação do Estado, que viria a se integrar, posteriormente, à Unesp, quando de sua criação.


          Luiz preparou um projeto de pesquisa sobre "A qualificação da mão de obra na empresa industrial" (cf. Pereira, 1963, pp. 119-124; 1971, pp. 135158), para conhecer e estudar o modo como a indústria preparava sua própria mão de obra, de certa forma o quanto a fábrica era também uma escola profissional. Eles precisavam de um auxiliar de pesquisa que fizesse o trabalho de campo: que fosse às nove indústrias de uma amostra probabilística, sorteadas numa lista das indústrias da cidade de São Paulo; que fizesse os contatos, obtivesse listas de operários, reconstituísse o processo de trabalho da empresa e fizesse as entrevistas em residências espalhadas por toda a cidade, especialmente nos bairros operários, o que se daria à noite e nos fins de semana. Eu estava no final do segundo ano do curso de Ciências Sociais noturno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e era aluno de Fernando Henrique e de Octavio Ianni. Fernando Henrique convidou-me, então, a trabalhar nessa pesquisa, com uma bolsa, creio que do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, obtida por meio do Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que funcionava na USP. Eu trabalharia junto com outros dois estudantes mais experimentados. Na verdade, eles acabaram recebendo a bolsa, mas não se envolveram na pesquisa.


        A experiência foi para mim interessante, apesar de ter deixado o emprego em que ganhava bem e que me mantinha. Luiz estava chegando do interior, contratado pela cadeira do professor Florestan, como docente, e ainda não tivera nenhum contato com os alunos da FFCL. Foi morar num apartamento da rua Caio Prado, perto da Maison Suisse, onde de vez em quando jantava e onde tivemos uma de nossas primeiras conversas. Era um leitor disciplinado, mas pouco motivado para o trabalho de campo, que ficou inteiramente a meu cargo. Além disso, era notívago, passava a noite lendo, dormia tarde e só acordava depois das onze horas da manhã. Passei a encontrar-me com ele todos os dias nesse horário para relatar o trabalho feito no dia anterior, ver suas reações, responder suas perguntas e anotar recomendações para o prosseguimento da pesquisa. Fizemos isso durante dois anos, pelo menos. Almoçávamos juntos todos os dias, "rachando" o preço do prato único dividido pelos dois.


      Por essa época, o grupo de participação e de sociabilidade de Luiz Pereira, o seu grupo de referência, como poderia definir Robert Merton, não era o da Faculdade de Filosofia; era o de seus antigos colegas e amigos de um setor da faculdade, o do curso de Pedagogia, e da área de educação, com os quais se encontrava para conversar, ir ao teatro ou ao cinema. Fui por ele convidado para um desses encontros, quando o grupo foi ao Teatro Municipal ver o Balé da União Soviética. Os interesses desse grupo não eram muito diferentes dos interesses culturais de quem circulava pelo saguão da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia, 294, do qual se distanciava apenas pela idade, alunos que haviam sido da mesma escola. Era constituído de pessoas mais maduras, maturidade acentuada pelo comum cometimento profissional à educação. Aquele era o lugar de uma rica troca de ideias e de informações sobre literatura, música, teatro e cinema, além de política, tanto entre alunos como entre alunos e professores. Conversas que eram esticadas até o restaurante de seu Osvaldo e dona Luci, no grêmio da faculdade, até o cafezinho no bar do seu Antônio, na esquina da rua Dr. Vila Nova, ou ainda o restaurante do seu Archimede e da esposa, italianos, no porão de uma das velhas casas, no mesmo lado da faculdade, entre a Dr. Vila Nova e a rua da Consolação. Até pouco tempo antes, o movimento se encerrava quando passava o último bonde no rumo da cidade, o número 14, "Vila Buarque", cerca de 10h20 da noite, coincidindo com o final da última aula. Não raro, o motorneiro parava o bonde na porta da faculdade para esperar a saída de todos os alunos. Às vezes, ia tomar um café no bar da esquina, enquanto isso.

     No saguão, os perfis dos alunos se definiam entre os que se julgavam de esquerda, ainda assim divididos entre militantes ou simpatizantes do Partidão, da Polop - Política Operária (que Octavio Ianni chegou a caracterizar como superego do PCB), os independentes e os que preferiam ser de coisa alguma. Mas a marca das classes sociais de origem estava em todos eles: os generosos e os egoístas; os que compartilhavam o que sabiam e os que escondiam o próprio saber, olhando com desprezo e em silêncio os circunstantes, principalmente os que, na relativa pobreza de seus argumentos, mostravam que vinham dos cantos escuros e desvalidos da sociedade. Havia uns poucos que economizavam exibições de conhecimento por menosprezo aos demais, eram os dotados de "ego inflado", designação que Luiz Pereira usava com frequência para se referir a eles. Do mesmo modo que se referia aos de língua solta e sem cuidado com a própria imagem como "boquirrotos". É verdade que havia os que não abriam a boca, menos para não exporem o que supostamente sabiam do que para não se exporem. Outros não abriam a boca para não distribuírem as migalhas preciosas de seu capital cultural, preservando-se para os embates mais decisivos da competição que atravessava a vida acadêmica. Ou, então, circunscrevendo a exibição de seu saber aos professores, não raro com a compreensível intenção de acumular prestígio nos ouvidos certos e, quem sabe, no fim do curso, ser convidados por um dos catedráticos para assistentes. Não obstante, no saguão organizavam-se, também, pequenos grupos de amigos para ir ao Teatro de Arena, no sábado ou no domingo, ver peças de Augusto Boal, Brecht, Moliére ou Gianfrancesco Guarnieri. Ou para ir ao pequeno e acolhedor Cine Bijou, na praça Roosevelt, ver sobretudo filmes franceses e italianos, ou ao Cine Joia, na Liberdade, ver filmes de Akira Kurosawa. Quem tinha dinheiro comprava os Cahiers du Cinéma, na Livraria Francesa, na rua Barão de Itapetininga, e eventualmente os comentava no saguão. Quem não tinha dinheiro, os lia do mesmo modo num confortável espaço de leitura que Paul Monteil mantinha num canto de sua livraria para os duros, como eu, que ali podiam ler livros e revistas, mesmo não tendo dinheiro, eventualmente comprando um livrinho da coleção "Que sais-je?". Minha primeira compra ali foi a de De la division du travail social, de Émile Durkheim. Luiz Pereira era um frequentador da livraria, de onde raramente saía sem um novo livro ou vários. Era tímido e se precavia contra demonstrações de sabedoria fora do lugar, que tinha o seu templo no saguão. Mas surpreendeu a todos um dia, no meio da arguição de uma tese de doutorado, com um comentário interpretativo competente e denso sobre La chi-noise, de Godard, filme de 1967, então muito debatido. Ali no saguão tramavam-se também aventuras, como foi a de ir em grupo ao Rio de Janeiro, de que participei, em 1962, para visitar a Exposição Soviética, um grande painel sobre o desenvolvimento científico e tecnológico daquele país, especialmente sobre o avanço de seu programa aeroespacial, sobre o qual se sabia pouco.

    As alegrias dessa cultura acessória dos cursos da Faculdade de Filosofia terminaram quando do movimento estudantil de 1968, que a pôs entre parênteses. A partir de então, excetuados os poucos que se engajaram sacrificialmente nas diferentes lutas armadas dos vários e minúsculos grupos ideológicos, a humanidade do saguão refugiou-se no privado e na cultura das conversações conspiratórias. Mesmo quem não estava envolvido em coisa alguma passou a se comportar como dono de algum suposto segredo da luta contra a ditadura, eventualmente sussurrando aqui e ali insinuações de bem informado, de estar "por dentro", para se fazer de importante, pretensos segredos confidencialíssimos quanto a um iminente acontecimento. Só muito depois do fim da ditadura, sobretudo com a publicação das listas de mortos e desaparecidos, é que se ficou sabendo quais eram, realmente, os relativamente poucos antigos alunos que se envolveram com diferentes grupos ideológicos na ação direta contra a ditadura, não raro luta armada (cf. AA.VV., 2009). É quase sempre uma surpresa constatar que determinado morto ou desaparecido era aluno da escola, sem nenhuma visibilidade na "sociedade do saguão", o que é muito significativo. Dessas listas não constam os que se envolveram, mas escaparam. Na verdade, a resistência majoritária contra o regime militar, na Faculdade de Filosofia, seguiu outros caminhos, nos programas de ensino e nas linhas de pesquisa. Ressalvadas essas exceções, as conversas cotidianas, nos recintos de circulação da faculdade, tornaram-se aborrecidamente sem graça, circunscritas às incertezas do político e às imprecisões, sem imaginação, do ideológico. Uma frase rabiscada, nos primeiros dias que se seguiram ao golpe de 1964, numa das portas internas do banheiro que ficava no topo do primeiro lanço da escada que saía do saguão, já indicava uma predisposição cultural e política na nova circunstância da ditadura:"Em terra de cego, quem tem um olho emigra".
                                                                                        


     A ruptura se confirmaria na Cidade Universitária, no nascimento de uma enjoativa cultura do exílio, marcada por ambições e ressentimentos, completamente oposta à animada cultura do saguão da rua Maria Antônia. As novas gerações de estudantes, e mesmo as de professores, nunca mais recuperaram o modo de vida da faculdade, anterior à nossa deportação para o campus do Butantã, reduzindo seus temas de convivência e conversação às miudezas insípidas próprias das incertezas criadas pela ditadura e das extensas fragmentações da comunidade acadêmica, marcadas pela desconfiança e pelo fuxico. Quando nos mudamos dos barracões, que seriam substituídos depois de nossa mudança pelos edifícios do Instituto de Psicologia, para o prédio de Filosofia e Ciências Sociais, com sua arquitetura pré-fabricada, medonha e burra, de colunas cinzentas no meio dos corredores e mesmo no meio de uma das salas de aula, de paredes brancas, alguém pichou, em vermelho, num dos corredores, esta proclamação significativa e libertadora: "Parede, eu te livro dessa brancura!". Era uma proclamação da cultura do subterrâneo, de que fala Henri Lefebvre, contra a superfície tomada pelos poderes, especialmente o da falta de imaginação do corporativismo, o da dominação burocrática e o do niilismo da falta de projeto institucional para compreensão da circunstância kafkiana que solapara o cotidiano da criação e difusão de conhecimento.


    A partir de nossa mudança da rua Maria Antônia, Luiz Pereira, que morava perto da faculdade, exacerbou o seu autoconfinamento, quebrado quase que apenas pelas saídas para as aulas na distante Cidade Universitária. Seus escritos refluíram para um formalismo seco, perdendo certo encanto poético que tiveram, como em seu artigo sobre "Mulher e trabalho" e em seu projeto sobre "A qualificação da mão de obra na empresa industrial", e que só excepcionalmente retornaria, como em seu ensaio sobre a urbanização "sociopática". Mesmo suas aulas perderam o lirismo que eventualmente tinham, como quando, para dar uma aula sobre socialização, usou a Autobiografia precoce, de Evtuchenko, jovem poeta russo dissidente (cf. Evtuchenko, 1966). Ele mergulhou numa sociabilidade redutiva e impaciente, expondo-se progressivamente a demandas alheias, imaturas e até oportunistas. O silêncio que cobriu sua obra após sua morte é a significativa indicação de quanto fora ele vitimado por esse recuo e pelo cerco que dele resultou. Não lhe sobrou um único discípulo, alguém que levasse adiante aspectos importantes de sua obra tanto na questão do desenvolvimento econômico como na questão de seus desdobramentos patológicos e anômicos, campo em que, de certo modo, foi pioneiro e criativo.

    O silêncio, aliás, cobre também a obra fundamental de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio Ianni, de Marialice Mencarini Foracchi, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, o núcleo mais denso de docentes e autores da antiga cadeira de Sociologia I, e também a obra dos docentes da antiga cadeira de Sociologia II - Fernando de Azevedo, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Ruy Coelho, Azis Simão -, sem contar Gioconda Mussolini, da cadeira de Antropologia, e Lourival Gomes Machado, Paula Beiguelman e Oliveiros da Silva Ferreira, da cadeira de Ciência Política. Uma espécie de revogação geral do pensamento de cientistas sociais originais e criativos, que nunca foram superados, decretada pela ideologização dos temas e das interpretações em nome de uma esquerda difusa e inconsistente, em nome da ignorância, do tipo "não li e sou contra", que cheguei a ouvir de alunos. Professores que em qualquer universidade se sentiriam honrados com o desafio de dar continuidade e desdobramento críticos ao legado de sua inserção institucional são os primeiros a omitir-se e a cavar o abismo que confina seus antecessores no cárcere do esquecimento.


     De um modo geral, a saída da rua Maria Antônia impôs a vários de nós um modo radicalmente diverso de relacionamento com a universidade, marcado sobretudo pela pobreza de esperança. Uma única vez deparei-me, no prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, na Cidade Universitária, com a bela surpresa de uma extemporânea manifestação do espírito da Maria Antônia. Encontrei-me, no hall, com os professores Isaac Nicolau Salum, de Linguística, e Alfredo Bosi, de Teoria Literária, entretidos em animada conversação sobre a Oração do Pai Nosso. Salum, pastor presbiteriano que, na faculdade, dava continuidade à profícua linhagem dos linguistas protestantes, que foi marca da escola, ponderava com Bosi, católico devotado e praticante, autor competente e fino, a importância de organizarem juntos um seminário exegético sobre aquela oração bíblica. Um luxo poético inimaginável na aridez do campus. Salum, aliás, é o autor da tradução literária para o português do belíssimo hino contido no poema sinfônico Finlândia, de Jan Sibelius.

       Como me esclareceu um dia o professor João Batista Borges Pereira, na Faculdade de Filosofia, foi por muito tempo historicamente forte a tradição de uma postura protestante, tanto na Linguística como nas Ciências Sociais, neste caso especialmente com Roger Bastide e Paul Arbousse-Bastide, que não eram parentes entre si, este último até mesmo professor da escola dominical de sua igreja. Em outras áreas do conhecimento da faculdade original também havia protestantes. Fora uma escolha aparentemente intencional dos fundadores da USP para, com protestantes e judeus, republicanamente evitar que a universidade pública se tornasse uma universidade católica financiada com dinheiro público, coisa que, de certa maneira, aconteceria com a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Em boa medida, a tradição crítica na Faculdade de Filosofia vem do objetivismo protestante e do distanciamento que possibilitava numa sociedade cujo senso comum era e ainda é católico.




sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 20)

As Ciências Sociais no Brasil

ESTUDOS AVANÇADOS -Você fez parte do grupo que, sob a liderança de Florestan Fernandes, colocou a sociologia no centro mesmo dos estudos sociais lato sensu, desde os fins dos anos 50 e ao longo dos anos 60. Esse período foi extremamente fecundo para as Ciências Sociais no Brasil, dele nós recebemos obras fundamentais. Em parte, esta tradição foi seguida, mas em parte, provavelmente em grande parte, ela foi ou dispersada depois das aposentadorias compulsórias ou efetivamente substituída por outro tipo de estudo. Gostaríamos que você fizesse uma apreciação desse processo de conservação de temas, de preocupações, de projetos e de mudanças. Como é que você vê, atualmente, a situação da sociologia no campo dos estudos sociais, e seria possível fazer um prognóstico sobre o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil?

J. S. M. -De fato, o período que se abre com o Ato Institucional nª 5, é um período de muita perda e pouco ganho para as Ciências Sociais, em particular para a sociologia. E essa minha visão não é tradicionalista, conservadora.

Acredito que o que aconteceu com nosso grupo na USP - um dos grupos mais dinâmicos e criativos da sociologia brasileira -, foi uma perda de substância. Essa perda de substância está, sem dúvida, ligada às cassações dos professores que foram afastados, mas já se anuncia, de certa maneira, um pouco antes, quando se pode notar uma certa resistência a uma liderança intelectual como aquela do professor Florestan Fernandes, que mantinha uma acentuada preocupação com as possibilidades de transformação do Brasil numa sociedade diferente, mais justa, mais democrática e mais rica, mas dentro dos marcos da ordem, entendida no sentido de que não era preciso criar uma convulsão social para conseguir atingir certas metas sociais e políticas.

A própria circunstância da ditadura e seus efeitos na vida de vários membros do grupo, acabou levando a um desdobramento da obra de Florestan Fernandes, que se enriqueceu com um tratamento mais incisivo e dialético dos impasses históricos a que o país se transformasse numa democracia social ou num país socialista.

Essa foi a grande marca dessa sociologia, na origem uma sociologia de inspiração positivista. O melhor de sociologia que se fez no Brasil foi inspirado por essa perspectiva. Claro que a ditadura, e sobretudo a violência do AI-5, questionou a idéia do compromisso básico com uma certa idéia de ordem social, que não era uma idéia de ordem política. Em conseqüência, e sobretudo pelo fato de que houve as cassações, se criou um vazio e, na verdade, esse vazio foi preenchido por uma outra mentalidade, não apenas por outros pesquisadores. A partir daquele momento, a sociologia na USP, com exceções óbvias, tendeu para o fragmentário, tendeu a fazer diagnósticos tópicos a respeito de problemas muito desencontrados entre si, e abriu mão da possibilidade de ter um diagnóstico de conjunto, característica da sociologia do professor Florestan Fernandes.

Havia um projeto para o Brasil na sociologia de Florestan Fernandes e de seu grupo. Com essa ruptura, houve algumas conseqüências curiosas. Em primeiro lugar, a sociologia se afastou da própria sociologia. Os sociólogos - especialmente os mais jovens, os que vieram depois, os que não tinham nenhum compromisso com as tradições da Faculdade de Filosofia da USP e, aparentemente, não queriam tê-lo -tenderam muito mais a fazer uma quase-filosofia do que propriamente sociologia. Em vários trabalhos assim surgidos, há muito mais ensaísmo, quase filosófico, do que propriamente sociologia.

A tradição da sociologia do professor Florestan Fernandes sempre foi a tradição da pesquisa empírica, da sociologia indutiva, exatamente porque ele também era herdeiro dessa tradição, não a inventou. A idéia era de uma sociologia que decifrasse o Brasil; a sociologia que vem depois de 1968 tentou, basicamente, tratar dos grandes temas e dos grandes debates que a sociologia estava travando em outros países mas sem nenhum enraizamento na sociedade brasileira, sem tratar dos grandes problemas que o Brasil enfrentava, sobretudo os novos grandes problemas criados exatamente pela ditadura, pelo recrudescimento da repressão, inclusive dentro da universidade.

Abriu-se o período de uma cultura de descompromisso com os destinos do país. Não quero dizer que as preocupações desses autores não sejam relevantes, mas não acho, por exemplo, que transformar Foucault em sociólogo resolva sequer os problemas que o próprio Foucault tratou nos seus trabalhos. Foucault é um interlocutor da maior importância, mas não podemos passar para nossos alunos a falsa suposição de que Foucault seja um sociólogo substitutivo e melhor do que os verdadeiros sociólogos. Ele é um interlocutor, uma referência enriquecedora..

O mesmo se fez com outros autores, com sociólogos e filósofos sociais alemães, que entraram na nossa discussão como se fossem grandes sociólogos e definissem grandes diretrizes do pensamento sociológico Ou seja, a ruptura de 1968 é uma ruptura do compromisso do intelectual com relação à realidade em que ele vive, o que foi muito grave. Aliás, estamos vivendo as conseqüências disso agora. O governo precisa de respostas, a sociedade precisa de respostas, precisa de indicações de pistas de como atuar, e as ciências sociais não estão dando essas respostas, não estão dizendo absolutamente nada. Elas estão numa fase de especulação interpretativa e ensaística, que deverá ter sua importância, ao menos residual, reconhecida no futuro. Porém, não atende, efetivamente, às questões que estão diante de nós. Estamos reduzidos a um esteticismo sociológico de fôlego curto.

É claro que não se trata de voltar aos temas daquela época. Os temas daquela época foram os temas que a época propunha. A época hoje propõe outros temas e problemas. Mas é lamentável que não haja ninguém na sociologia brasileira, e sobretudo na sociologia de São Paulo - ninguém como grupo, como sujeito de trabalho acadêmico -, preocupado com os problemas sociais, com aquilo que o próprio Florestan Fernandes definia como problemas sociais: a desagregação, a miséria, o desencontro, a dessocialização de imensos e problemáticos grupos sociais, a favelização do mundo urbano, a deterioração das condições de vida. Estes são temas para sociólogos e antropólogos trabalharem, e eles não estão fazendo isso.

A maioria de nós está preocupada com outras coisas, não com essas questões, e elas são substantivas para a sociedade brasileira. Outras questões pendentes dizem respeito às condições da democracia no Brasil, ao que vem a ser essa democracia que está aí hoje. Quanto tempo ela pode durar? Em que condições ela vai ser expressão de uma ansiedade progressista da população brasileira?

A própria questão agrária tem sido estudada de maneira equivocada, como já foi apontado anteriormente. Ela não tem sido estudada, na universidade, como ingrediente fundamental do processo de constituição de uma sociedade nova no Brasil, mas como um problema marginal. O próprio governo trata a questão agrária dessa maneira, não como uma questão básica mas como uma questão marginal que pode ser resolvida administrativamente; que não deve ser resolvida estruturalmente.

Enfim, o quadro é de desagregação, e se complica em conseqüência do corporativismo próprio de nossas instituições acadêmicas, incorporado na própria estrutura das entidades científicas que congregam os cientistas sociais.

Olhando esse panorama, não parece haver lugar para inovação temática, apenas para reforço do existente. Não há nenhum espaço para criação e formulação de novos temas e problemas de investigação, o que deveria estar sendo feito pelos departamentos universitários, já que as instituições não o fazem. E os departamentos também não estão fazendo, porque toda pressão sobre eles, vinda da Capes, do CNPq, das instituições de pesquisa e às vezes das próprias universidades, é no sentido de definir linhas de pesquisa.

Definir linhas de pesquisa significa estabelecer um trajeto pré-determinado para aquilo que se vai fazer, o que não deixa espaço aberto para a criatividade interpretativa e investigativa, marca da sociologia numa fase em que ela era menos organizada, menos estruturada aqui no Brasil. É preciso recuperar o terreno da liberdade de criação nas ciências sociais para que se possa inovar e retomar as possibilidades de trabalhos de boa qualidade que a sociologia brasileira já teve no passado.

domingo, 21 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 19)

Reforma agrária: possibilidade de ressocialização

ESTUDOS AVANÇADOS - Evidentemente, o tema da reforma agrária e a relação da questão agrária com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é algo extremamente candente e atual. Você tem pontos-de-vista muito elaborados sobre esse tema, dada sua longa familiaridade com trabalhos empíricos, sua assessoria à Comissão Pastoral da Terra; enfim, seu nome está, umbilicalmente, ligado ao problema agrário no Brasil. Gostaria que você pudesse desenvolver um de seus pontos-de-vista a respeito da reforma agrária, sobretudo a desvinculação com o que você chama agrarização do tema. Se bem entendo, você faz uma separação inicial para clarear o terreno.

J. S. M. - No Brasil, o tema da reforma agrária tem sido dominado por uma preocupação característica dos anos 50, ou seja, uma reforma agrária que resolva o problema de acomodar, no cenário social e político, grandes massas rurais da população que não conseguem se integrar no mundo urbano e moderno.

Sobretudo no Brasil, a reforma agrária tem sido tratada pelas esquerdas, mas também pela direita, como uma solução arcaica para os problemas de um país que pretende, quer e precisa se modernizar. Sempre entendi que há nisso um equívoco enorme. A reforma agrária é a condição da modernização no Brasil, não só porque desobstrui os caminhos da transformação do país num país moderno, mas também porque tem possibilidade de abrir um novo campo de atividade profissional. Desagrarizar a questão agrária é fundamental para que as atividades rurais possam ser encaradas como profissão, como qualquer profissão moderna. Isso está acontecendo em outros países.

A experiência dos kibutz,em Israel, fazendo um grande apelo a populações que não têm nenhuma origem rural, ressocializa as pessoas para uma nova perspectiva de vida ligada à natureza, ao trabalho no campo, e assim por diante; é algo que tem de ser feito no Brasil. Para um país que possui muita terra e baixa capacidade de geração de empregos, ou pelo menos capacidade insuficiente, a alternativa de reinserção de amplos contigentes da população no mundo rural - pessoas que têm uma origem ainda não muito remota no mundo rural - é uma forma de solução de problemas sociais que deveria ser considerada. A questão da reforma agrária deveria ser encaminhada por aí. Nesse sentido, o país tem condições, e tem necessidade, de fazer da reforma agrária um grande projeto de reforma social no campo.

Todos os grupos que têm lutado pela reforma agrária não estão se dando conta de que existe essa alternativa para ser incorporada nas respectivas bandeiras. Mesmo o Movimento dos Sem-Terra, que considero um movimento modernizador no campo, não encara a questão da reincorporação dos pobres da cidade no mundo rural como uma alternativa profissional tão boa como qualquer outra. Encaram apenas como uma forma de questionamento da problema da pobreza no país. É preciso questionar a pobreza, e vigorosamente. Mas, ao mesmo tempo, é preciso não fazer disso uma solução utópica do tipo "vamos resolver esse problema imediatamente porque as pessoas precisam comer". Acho que não se trata apenas da questão das pessoas poderem comer. Trata-se da questão delas terem uma inserção correta, e a melhor possível, nas atuais condições da economia e da sociedade.

Uma medida positiva recentemente implantada pelo governo foi a criação de um departamento de estudos no Ministério da Reforma Agrária. Esse departamento está colhendo subsídios para definir temas de pesquisa e de debate. Dependendo de como as coisas se encaminharem, acredito que as verdadeiras explicações sociais e políticas da reforma agrária poderão chegar à consciência dos funcionários do governo e dos altos funcionários responsáveis pela política agrária e, eventualmente, ganhar em termos de qualidade.

Como parte dessa tentativa de ter uma consciência mais abrangente do problema agrário, o Ministério convidou o sociólogo Juarez Brandão Lopes para organizar um departamento de estudos. Juarez, que foi professor na USP, está fazendo contato com a comunidade acadêmica, inclusive para estudar a viabilização de projetos de pesquisa, pedindo sugestões de temas, enfim, buscando a cooperação acadêmica, algo muito positivo.

Não sou excessivamente otimista em relação ao alcance de projetos como esse, mas acho que é necessário ampliar a informação que se tem sobre a questão agrária, sobretudo a informação que o Estado tem sobre ela. Há temas urgentes que precisam ser investigados. Onde é que estão os bloqueios da reforma agrária? Não há nenhuma informação consistente sobre o assunto.

Já existe uma certa literatura sociológica, pequena e de razoável qualidade, sobre os grupos que se opõem à reforma agrária. Mas, efetivamente, onde está o bloqueio, qual a qualidade dele, como é que ele se faz presente, por exemplo, no Congresso Nacional, nos tribunais, nas polícias, que acabam se envolvendo em esquemas de repressão contra aqueles que lutam pela reforma agrária? Esse bloqueio não está identificado e diagnosticado, e este é um tema que poderia ser investigado.

Minha tese é de que o Movimento dos Sem-Terra, ao contrário do que disse Fernando Henrique Cardoso há algum tempo, numa entrevista à Folha de S. Paulo, não representa o arcaico contra o moderno. Ao contrário, o Movimento dos Sem-Terra representa uma substancial modernização das relações sociais no campo.

Há, nos acampamentos dos sem-terra, um poderoso mecanismo de ressocialização, um mecanismo que reintegra a tradição familiar do mundo camponês na realidade econômica do mundo moderno, o que é precioso, pois há poucos países em que as lutas populares no campo se desenvolveram com essa dimensão modernizante, o que não pode ser subestimado.

Este é, portanto, um outro tema que sugiro que seja melhor estudado: o processo de ressocialização nos acampamentos e assentamentos, inclusive fazendo estudos comparativos entre assentamentos oficiais do Incra, assentamentos feitos por empresas privadas - o que aconteceu muito na região amazônica no período militar - e assentamentos espontâneos, promovidos pelo Movimento dos Sem-Terra, eventualmente com apoio da Igreja.

Acredito que esses estudos poderiam ajudar o governo a ter uma consciência menos dependente dos técnicos e dos economistas, que estão dando ó tom na questão da reforma agrária de maneira equivocada. Os elementos que têm sido apresentados prejudicam o diálogo, não ajudam na construção de um projeto para a sociedade brasileira que incorpore a questão agrária positivamente, uma questão que, se resolvida, colocará o país num caminho político e social parecido com o que aconteceu em outros lugares. Sugeriria, inclusive, que fosse feito um estudo comparativo sobre a questão agrária e suas soluções em vários países, como Estados Unidos, Brasil e Japão.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 18)

Reforma agrária, governo e MST

ESTUDOS AVANÇADOS -Gostaríamos de ouvi-lo sobre a questão agrária e o que está acontecendo mais recentemente, inclusive em relações às iniciativas governamentais. Como é que você vê a atual situação dessa questão, e qual a perspectiva a curto e médio prazos sobre o problema dos assentamentos e do movimento dos sem-terra?

J. S. M. - Nas últimas semanas, algumas coisas importantes aconteceram em relação à questão agrária, importantes por revelarem as dificuldades de todos aqueles nela envolvidos, tanto do governo quanto dos próprios sem-terra e também da Igreja, que atua nessa área por meio da Comissão Pastoral da Terra.
Estamos vivendo um momento de impasses em relação à questão agrária. Em primeiro lugar, houve a marcha dos sem-terra, que foi louvada e acolhida, interpretada como uma manifestação criativa que ajudaria a desbloquear a questão agrária porque forçaria o Estado brasileiro a tomar medidas. Mas a verdade é que tudo indica que a marcha foi uma faca de dois gumes. Ela colocou o governo em face da realidade, da pressão dos movimento sociais por reforma agrária, mas, ao mesmo tempo, revelou a fragilidade do movimento social.

A marcha dos sem-terra, basicamente, funcionou como uma marcha de questionamento de legitimidades. Questionou a legitimidade da representação política, por meio da qual os sem-terra costumam falar no Congresso Nacional, porque foi preciso ir à Brasília, como sujeito específico de reivindicação política, sem a participação dos representantes políticos do movimento dos sem-terra. Os deputados e os senadores foram meros acólitos desse processo, o que fragilizou essa representação.

Fragilizou também a representação sindical, pois revelou as rupturas internas entre aqueles que falam a favor da reforma agrária. O confronto entre Contag e Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, ficou claro naquele momento. Mas também ficou claro que no conjunto do movimento sindical a velha ideologia de esquerda de que a classe operária vai na frente e o trabalhador rural vai atrás não se confirmou, porque as coisas se inverteram. O movimento sindical brasileiro precisou dos trabalhadores rurais para poder se expressar politicamente no maior cenário político do país, Brasília e a Praça dos Três Poderes.

Fragilizou, ainda, o próprio Movimento dos Sem-Terra, porque o Movimento questionou não apenas as ambigüidades da política agrária do governo atual mas também a legitimidade política do governo. O MST não foi dialogar com o governo, mas questioná-lo em seu conjunto. Este fato leva às interpretações que estão sendo feitas de que, no fundo, o Movimento dos Sem-Terra virou partido político. Tenho algumas dúvidas sobre esta afirmação, mas acho que é uma hipótese a ser considerada. O movimento se fragilizou porque não percebeu que todo processo tem no mínimo dois lados, e o outro lado também é capaz de tomar iniciativas. Neste caso, o "outro lado" tomou uma iniciativa importante: abriu o Palácio e mandou as pessoas entrarem, dizerem qual era a reivindicação que estavam fazendo. E os manifestantes não tinham uma reivindicação para fazer. Fizeram muita ironia, mas não apresentaram um projeto, è isso ficou bastante claro.

Depois o Planalto convidou o Movimento dos Sem-Terra para estudar a possibilidade de uma comissão conjunta para definir as diretrizes do programa agrário do governo Fernando Henrique Cardoso. O Movimento dos Sem-Terra demorou para responder e, quando respondeu, disse não. Qual o sentido de fazer uma marcha à Brasília, com uma enorme mobilização da opinião pública, se de fato não se tem proposta nenhuma?

O governo, por sua vez, aparentemente percebeu essa fragilidade e está tomando medidas que obviamente não favorecem a luta pela terra, nem a política de reforma agrária. Acredito que o decreto recente do governo, em forma de medida provisória, que define como será feita a reforma agrária, tem um destinatário certo quando afirma que não vai desapropriar terras onde haja invasões, esperando a desocupação. Esse destinatário é o Movimento dos Sem-Terra. O MST está em face da urgentíssima necessidade de rever suas metas, suas estratégias, sua prática e sua luta, o que provavelmente será feito, mas implica em reconhecer que está diante de desafios poderosos.

Por outro lado, acredito que esse mesmo decreto remove, ainda que parcialmente, os obstáculos que a Constituição de 1988 criou para a reforma agrária. Em termos legais, ele agiliza os mecanismos de desapropriação e de imissão de posse, o que pode fazer com que surjam mudanças importantes.

De qualquer modo, um problema que permanece é que a reforma agrária continua sendo feita a partir de motivações de natureza econômica, e continuo insistindo que a reforma agrária deveria ser feita por motivações de natureza social. Ou seja, num país como o Brasil, ela tem de ser feita por razões de política social e não de política econômica. A reforma agrária como expressão de política econômica é uma herança da ditadura, e é uma reivindicação dos grandes proprietários de terra. Toda e qualquer iniciativa nessa área fica dependendo da priorização da questão da produtividade, ou seja, pôr o pequeno agricultor pobre competindo por padrões de produtividade que são os do grande proprietário, altamente beneficiado por uma política de incentivos fiscais e que pode utilizar, embora nem sempre utilize, padrões tecnológicos muito desenvolvidos.

Em suma, o quadro é um quadro de impasses. Os grupos de oposição a Fernando Henrique Cardoso, em geral grupos de esquerda, como a Igreja e o PT, por exemplo, estão instrumentalizando excessivamente a questão da reforma agrária para viabilizar seu próprio antagonismo. Acredito que seja um equívoco básico. Por que? Porque a questão agrária, como já foi dito, é similar, em termos de qualidade política, à questão da escravidão no século XIX, ou seja: é uma questão suprapartidária, não podendo ser objeto exclusivo de um programa partidário. Ela tem de ser programa de todos os partidos, e não apenas de um. Se não for tratada como questão suprapartidária não se viabilizará, e o Brasil continuará com esse grave problema, comprometendo a viabilidade da transformação do país num país democrático.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 17)

A participação das igrejas protestantes e o surgimento das seitas

ESTUDOS AVANÇADOS - Você se refere a alguns grupos, algumas confissões protestantes que ficaram próximas da Igreja Católica naquele momento de repressão e que, de algum modo, ainda trabalham numa linha progressista. Você poderia particularizar um pouco quais seriam estas confissões protestantes que se abriram ao social a partir dos anos 60?

J. S. M. - Poderia responder a partir da minha experiência direta no trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, por exemplo, tem sido membro oficial da Comissão Pastoral da Terra, apesar da CPT ser um órgão da CNBB. Durante muito tempo a vice-presidência da CPT foi ocupada por pastores luteranos, sucessivamente, e a presidência por bispos católicos. Em algumas regiões do Brasil, como Paraná e Rondônia, a CPT é sempre dirigida por um luterano e não por um católico, porque os católicos são minoria no trabalho da CPT nessas áreas. Há, portanto, uma convivência ecumênica muito importante.
Os presbiterianos descartados oficialmente pelas suas igrejas se recolheram para a Igreja Católica, continuando presbiterianos. Não se converteram nem foram solicitados à conversão, e se tornaram colaboradores importantes de bispos, em trabalhos pastorais. Foram efetivamente acolhidos, a palavra é essa. Como outro exemplo, posso dizer que ainda hoje encontro pastoras da Igreja Metodista em reuniões da CPT. No início do seminário metodista, em São Bernardo do Campo, o paraninfo da turma de pastores ali formados em 1964 foi dom Hélder Câmara, logo depois do golpe. Pelo menos estas três igrejas - os dissidentes e descartados da Igreja Presbiteriana, e os pastores e pastoras da Igreja Luterana e da Igreja Metodista - têm tido uma convivência com a Igreja Católica, até mesmo oficialmente, como é o caso da Igreja Luterana.

Há ainda os encontros de bispos no Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic), sobretudo no sul do Brasil, que reúnem protestantes e católicos. No ano em que assessorei a assembléia da CNBB havia um representante da Igreja Luterana, convidado por dom Ivo Lorscheider. Dom Ivo representava a Igreja Católica no Conic, e esse pastor era o representante dos luteranos naquele Conselho. Dessa forma, tem havido todo um trabalho de convivência, colaboração e apoio recíprocos, sobretudo na área das pastorais sociais, independente de restrições hierárquicas de pessoas que não estão familiarizadas com o que esteja acontecendo mais no chão.

ESTUDOS AVANÇADOS - Para encerrar esse tema da relação entre igrejas e sociedade, nós não podíamos omitir, tratando-se de uma visão de um sociólogo, o que está acontecendo com o que se chama a multiplicação das seitas. Estas seitas, que parecem não ter ligação nenhuma com as igrejas citadas, quer a Católica, quer as igrejas protestantes mais tradicionais, em geral são interpretadas como fenômenos da religião numa sociedade de massas, com forte componente conformista e conservador. Você vê que isto já tem um peso, no sentido ideológico, nos subúrbios da periferia?

J. S. M. - Sem dúvida tem. As seitas, que não são igrejas protestantes, é importante dizer isto, mas sim igrejasevangélicas, não têm nenhum vínculo com a doutrina, nem com as orientações teológicas da Reforma Protestante. São, digamos assim, uma espécie de resíduo extremo do que foi a Reforma, mas não têm nenhuma relação com ela.

As seitas estão crescendo muito, basicamente nesse território vazio de alguns possíveis equívocos do trabalho pastoral da Igreja Católica. Talvez a estratégia de redefinição da relação da Igreja Católica com as populações mais pobres, na periferia, em certas áreas rurais quase urbanizadas, seja um tanto quanto insuficiente, excessivamente ritual. Seria necessário rever criticamente certas coisas, o que vale para as igrejas protestantes tradicionais, que também estão perdendo pessoas para esses grupos.

As igrejas eletrônicas, as igrejas do espetáculo religioso, as seitas, estão cobrindo uma necessidade da população que não é uma necessidade religiosa stricto sensu. Estão cobrindo necessidades psicológicas dos que sentem a carência de ser parte de alguma coisa ampla, e não de algo pequeno como as comunidades de base, ou seja, de ser parte do espetáculo moderno. Mas isso não é o moderno, é apenas o espetáculo do moderno. Não tenho dúvida de que se fizermos uma pesquisa, descobriremos que elas têm a função de reintegrar as pessoas que estão à margem, recriando uma concepção administrada da esperança.

Há aspectos que poderiam ser avaliados positivamente mas, de qualquer modo, essas seitas criam uma massa manipulável, em todos os sentidos. Para mim, esse é seu aspecto mais complicado Essas seitas não se contentam em manipular em termos de crença, de religião, de estabelecer uma espécie de liderança carismática compulsória, se é que isto é possível. Buscam manipular também no âmbito da política, no âmbito de outras opções, e de fato estão crescendo como partidos políticos, não apenas como seitas religiosas.

domingo, 7 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 16)

A esquerda e a Igreja Católica no Brasil

As primeiras reuniões de bispos para rediscutir a visão da Igreja foram feitas simultaneamente em três lugares: na Amazônia, no Nordeste e em São Paulo, com um grupo coordenado por dom Paulo. Estas reuniões foram realizadas por ocasião do aniversário da Declaração aos direitos humanos e produziram documentos, talvez os mais importantes já produzidos pela Igreja Católica no Brasil nesta segunda metade do século 20. Foi nesse momento que a Igreja tomou consciência e começou a denunciar que o capitalismo não era exatamente o que ele próprio anunciava. A partir daí ela decidiu se posicionar, dizendo que seu compromisso não era com o capitalismo, nunca havia sido, mas com a dignidade humana, com a sobrevivência do homem.

Esses documentos da Igreja Católica têm mais importância do que imaginamos, formando os elementos de referência crítica da Igreja em relação a sua própria experiência e ação pastoral. A Igreja se abre nesse momento a outras perspectivas. É preciso lembrar também que nessa época há muitos perseguidos políticos e religiosos que não são católicos. O fato de dom Paulo ter em São Paulo o presbiteriano Jaime Wright como um de seus assessores importantes é muito indicativo de uma abertura de mentalidade bastante relacionada ao Concilio Vaticano II, ao Papa João XXIII. A Igreja passa a mostrar muito mais tolerância e disponibilidade para conviver com o diferente, e numa escala que a esquerda não foi capaz de cultivar.

A esquerda não se tornou capaz de conviver com os grupos religiosos no Brasil, e continua sendo intolerante em relação a eles, subestimando-os e desdenhando-os. A Igreja Católica, por sua vez, foi capaz de conviver com a esquerda. Naquela época de perseguições, muita gente de esquerda perseguida foi abrigada pela Igreja, tanto na Amazônia como em São Paulo. E os descartados pelas igrejas protestantes, sobretudo pela Igreja Presbiteriana, foram abrigados pela Igreja Católica em vários lugares do Brasil. Encontrei presbiterianos trabalhando na Pastoral Social Católica, em Brasília, alguns eram até mesmo pastores. Aconteceu com eles o que aconteceu com todos que tinham uma posição mais à esquerda, mais humanista, mais ecumênica: eles foram postos para fora de suas igrejas.

A Igreja Presbiteriana depurou seus quadros, colocou efetivamente as pessoas para fora, tornando-se, informalmente, a Igreja do Estado. Pessoas como Rubem Alves e Jaime Wright, entre outras, tiveram sua permanência na Igreja inviabilizada. Muitas dessas pessoas foram absorvidas pela Igreja Católica, até mesmo pessoas de esquerda que eram materialistas, que não acreditavam em Deus, que não possuíam religião alguma. Até as pessoas que se diziam anticatólicas, que achavam que a Igreja era um instrumento de poder, foram abrigadas pela Igreja Católica e participaram ativamente de seu trabalho pastoral durante muito tempo.

Naquele momento, a Igreja sofreu uma grande transformação, em parte devido a características que ela já possuía, em parte devido ao tipo de educação que o episcopado recebia. A origem social do clero, em sua maioria vindo de regiões camponesas, também foi um fator importante. Além disso, a conjuntura favorecia essas mudanças, apontando claramente a necessidade de que alguém exercitasse a solidariedade e a generosidade numa escala não vista antes. As pessoas precisavam de abrigo, de apoio, de acolhimento e de proteção.

E neste contexto que a Igreja se ressocializa, principalmente os bispos, aqueles que sofriam as demandas mais contundentes dessa hora de sofrimento. Os bispos se ressocializaram, eles não se converteram; naquele momento, descobriram dimensões muito mais amplas da sua própria opção religiosa e da sua própria vocação. E minha tese é de que isso o Vaticano não teve e nem tem condições de mudar. A Cúria Romana, que é muito conservadora, burocrática e institucional, não conhece e, portanto, não pôde interferir nesse processo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 15)

Igreja e questão agrária

No caso específico da questão agrária, até os anos 50 a Igreja Católica tinha uma linha bastante clara: nunca havia falado em reforma agrária, nem tinha preocupações a esse respeito. É com o bispo dom Inocêncio, de Campanha, em 1950 -exatamente o mesmo ano em que o Partido Comunista está se dividindo por causa da questão agrária - que começam a aparecer dificuldades a esse respeito, quando ele faz um primeiro pronunciamento episcopal a favor de uma reforma agrária.

Dom Inocêncio não era a favor da reforma agrária na perspectiva que a Igreja tem hoje. Mas era evidente que havia um enorme problema social relacionado ao problema da terra, e também o temor de uma convulsão no campo que retirasse da Igreja suas bases religiosas, o que está dito explicitamente no documento de dom Inocêncio, um documento pioneiro em que ele anuncia uma tentativa de conversação entre fazendeiros e trabalhadores daquela região. Ele era bispo em Minas Gerais, e os grandes fazendeiros participaram de uma assembléia realizada em sua diocese para discutir o problema da reforma agrária. Nessa altura, começa a ficar evidente que os bispos estão tomando consciência de que a questão agrária iria eclodir. No Brasil, a primeira consciência se deu com o que se chamava na época de "questão do êxodo rural".

O que significava o êxodo rural? O trabalhador saía da sua vidinha de família no campo, porque não tinha mais alternativas. Ia para a cidade viver nas favelas, como relatou dom Inocêncio. Depois de um primeiro contato, os bispos começaram a perceber que esta situação envolvia algo mais do que um simples comprometimento das bases da Igreja Católica. Envolvia, também, um processo de desmoralização das pessoas, de desagregação das famílias, de comprometimento grave da dignidade humana. Surgiu, assim, além da preocupação religiosa, uma preocupação moral.

Parece que esse foi o fermento nos anos 60. Nas vésperas do golpe, a Igreja se declarou a favor da reforma agrária, mas respeitando o direito de propriedade. Ela estava fazendo claramente a opção por um capitalismo humanizado. Depois veio o golpe e, sobretudo, a política implantada na Amazônia, e é lá que se dá uma grande mudança na orientação pastoral dos bispos. É na Amazônia que apareceu dom Pedro Casaldáliga, que tomou posse na prelazia de São Félix do Araguaia em 1971. Dom Tomás Balduíno, que já estava fazendo um trabalho com os índios na região do Araguaia, foi para Goiás Velho.

Esses bispos descobriram uma coisa importante na Amazônia: o que estava acontecendo naquela região era justamente a expansão do capitalismo, mas não de um capitalismo que salvaria a condição, a decência, a dignidade e a sobrevivência das pessoas. Ao contrário, tratava-se de um capitalismo que brutalizava e escravizava. Dom Pedro Casaldáliga percebeu isso imediatamente, pois ao chegar em São Félix as primeiras pessoas que o procuraram foram escravos fugidos, alguns morrendo. Dom Pedro relatou esses e outros fatos em sua carta de 1971. Tenho inclusive uma fotografia dele enterrando um sujeito sendo carregado em uma rede, ainda vestido de batina, todo de branco, recém-chegado.

O capitalismo veio bater na porta dos bispos, e mostrou sua verdadeira face, não aquela que aparecia nos documentos e nas teorias, não aquela que aparecia na ilusória suposição de que com o desenvolvimento capitalista os problemas da população estariam resolvidos. Pensava-se que o que prejudicava o Brasil era o Brasil arcaico. Havia um debate polarizado em torno disso, e a Igreja Católica participou muito desse debate do Brasil moderno contra o Brasil arcaico. A pressão da Igreja foi muito importante para a criação da Sudene, com a perspectiva de modernizar o Brasil, criar empregos e alternativas de vida, melhorar as condições de vida da população em geral.

Na Amazônia, esse modelo da convivência com o capital, gestado pelos bispos do Nordeste, não funcionou, porque não se tratava disso. Na Amazônia também houve incentivo fiscal e grandes propostas de desenvolvimento. Os fazendeiros queriam cooptar a Igreja para a violência que estavam cometendo, uma violência óbvia em que as pessoas apanhavam, eram assassinadas, tentavam fugir e eram amarradas, trucidadas. Dom Pedro, e os padres que trabalhavam com ele, testemunharam tais fatos inúmeras vezes.

sábado, 29 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 14)

Igreja e sociedade: a opção pelas minorias

ESTUDOS AVANÇADOS - Nas suas andanças pelo interior do Brasil, pelo Norte, você tem tido oportunidade de assessorar a Pastoral da Terra e tem conhecido por dentro o que é a posição da Igreja Católica, ou pelo menos de inúmeros bispos da Igreja Católica, em relação ao problema da escravidão, ao problema dos índios, enfim, das conseqüências todas do capitalismo no Brasil e no mundo. Gostaria que você, com toda liberdade, nos desse a sua interpretação dessa mudança que ocorreu, particularmente a partir dos anos 60, no interior da Igreja, e que perdura apesar do contravapor conservador dos últimos anos. Como você vê essa opção preferencial pelos pobres que vem sendo a marca coerente de parte da Igreja Católica?
J. S. M. - Sei que esse é um tema que tem sido objeto de muita preocupação por parte não só de católicos mas de protestantes também, porque algumas igrejas protestantes passaram por um processo parecido, e outras passaram por um processo parecido ao contrário, como é o caso da Igreja Presbiteriana, que se radicalizou na linha oposta nos anos 60, aderindo e justificando a ditadura.

Para que se entenda o que vou dizer a seguir, retomo algumas questões relacionadas às igrejas protestantes no Brasil. Com o golpe de Estado de 1964, houve uma "protestantização" do Estado brasileiro, antes impensável. Pela primeira vez na história do Brasil, protestantes, sobretudo das igrejas tradicionais calvinistas, tiveram acesso ao poder. Em Pernambuco e no Rio de Janeiro, foram eleitos governadores que eram presbiterianos. Em São Paulo, uma parte do governo Laudo Natel veio da Igreja Presbiteriana, por meio do colégio Mackenzie. Tivemos, finalmente, o presidente Geisel, de origem luterana. Não estou acusando as igrejas protestantes de serem coniventes com a ditadura, embora algumas tenham efetivamente sido. Mas esse fenômeno não foi ainda investigado e analisado como deveria.

No Brasil, onde os militares parecem ser, tradicionalmente, anticatólicos - em parte, por serem positivistas - parece ter havido um certo encontro de oposições religiosas nessa questão, o que não foi, em princípio, negativo. O mesmo aconteceu nos Estados Unidos, onde a Igreja Católica é muito avançada quanto à questão social. Quanto ao Brasil, parece que o Estado foi sendo "protestantizado" e que a Igreja Católica foi se transformando, institucionalmente, numa igreja de minorias e não de maiorias. Quando me refiro a minorias e maiorias, estou pensando em termos de poder, não em termos numéricos.

Nunca conversei com bispos sobre este assunto para saber se de fato eles perceberam esse processo. Se realmente aconteceu, foi um bem enorme para a Igreja Católica porque fez com que ela se desvencilhasse de um vínculo que possuía com o Estado e passasse a seguir sua vocação, seus princípios, suas concepções com muito mais liberdade, sem fazer concessões políticas ou se intimidar em face do poder.

Este é um ponto que tenho como referência ao refletir sobre o porquê da Igreja Católica ter dado passos tão importantes na direção em que deu. Evidentemente, esse processo já vinha acontecendo antes do golpe de 64. Venho de uma região que teve um dos chamados bispos progressistas, que me impressionou muito no período em que eu trabalhava na fábrica. Seu nome era dom Jorge Marcos de Oliveira. Era um homem que ia apoiar greve na porta da fábrica, para escândalo dos padres, que ficavam horrorizados com sua atitude.

Na minha cidade os padres eram extremamente conservadores, possivelmente velhos padres italianos fascistas. Eu inclusive colhi documentos na Itália sobre outras questões e descobri que alguns tinham até uma certa admiração por Mussolini, postura que também foi própria de uma certa época. É neste contexto que chega dom Jorge, aí pela segunda metade dos anos 50, para fazer as mudanças que achava que deveria fazer e para disputar espaço com o Partido Comunista na região. Ele não veio brigar com os comunistas; ao contrário, veio conviver com eles, reconhecendo a legitimidade da mediação ideológica e partidária deles. Dom Jorge deu uma grande lição de abertura nesse sentido, em fins dos anos 50 e começo dos 60. Nessa época já havia outros trabalhos desse tipo, como aquele realizado por dom Hélder no Rio de Janeiro, de onde também vinha dom Jorge.

Tenho lido essa questão da mudança de orientação na linha da Igreja não como uma simples mudança ou conversão, mas como um desbloqueio da coerência de sua opção ética e religiosa. Chego a ficar irritado quando as pessoas falam na conversão dos bispos por achar absolutamente desonesto pensar que até ontem eles agiam contra os pobres, contra o povo, e de repente alguma coisa aconteceu na vida deles e fez com que mudassem. É nesse sentido que não concordo com a idéia de conversão, pelo menos não entre os bispos que eu conheço.

Conheço muitos bispos no Brasil. Quando assessorei uma assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fiquei muito impressionado com eles. Com exceção de dois ou três casos de bispos mais intransigentes e fechados, todos se mostraram muito abertos para discutir, conversar, mudar de opinião, apoiar os que estavam em mais dificuldades, como os bispos da Amazônia numa determinada época. Assim, não acho que tenha havido conversão mas uma mudança na visibilidade de sua ação, além de uma maior solicitação de seu empenho pessoal. Aquele bispo que ficava no palácio episcopal - que freqüentemente não era realmente um palácio -desaparece e dá lugar a um bispo que é como dom Jorge: vai para rua, para a porta das fábricas.

No Brasil, essa atitude está também relacionada ao fato de que boa parte dos bispos vêm de regiões camponesas tradicionais. Por isso, a dimensão afetiva da vida, da decência das pessoas, está muito presente neles. Os bispos estrangeiros também vem quase todos de famílias camponesas, geralmente italianas ou espanholas. Talvez essa questão possa ser explicada um pouco por esse clima sociológico da condição de origem, do recrutamento dos bispos.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 14)

Terceirização, baixa renumeração e desemprego

ESTUDOS AVANÇADOS - Entendo que essa seria uma teoria imanente do capitalismo na fronteira, nas regiões periféricas?

J. S. M. - Não só na fronteira, mas em todas as regiões em que ele tenha que apelar em proporção muito grande à mão-de-obra, em que não possa tecnificar o processo produtivo. Nessas áreas, então, a tendência seria justamente encolher a proporção da participação do trabalho na composição orgânica do capital, de maneira a dar falsamente a dimensão de uma composição orgânica alta e não de uma composição orgânica baixa. Ou seja, os setores atrasados da economia podem estar na fronteira, mas podem estar também na indústria e na cidade. É o que está acontecendo com a terceirização, por exemplo, que tende a funcionar como se os trabalhadores fossem capitais de alta composição orgânica quando, de fato, são capitais de baixa composição. É nesse sentido que o trabalho passa a ter sua remuneração crescentemente reduzida.
ESTUDOS AVANÇADOS - A variante dessa tendência, nos países desenvolvidos, seria o aumento do desemprego?

J. S. M. - O aumento da terceirização, já que o desemprego é um de seus componentes estratégicos. O trabalhador é despedido - e isto está acontecendo maciçamente no mundo inteiro -, e para se reempregar o faz como se fosse empregado de si mesmo, passando a vender sua força de trabalho não por aquilo que necessita para sobreviver, mas concorrendo com os meios de produção. Em outras palavras, ele não concorre com os outros trabalhadores mas com os meios de produção.

O desemprego é apenas um dos resultados desse processo, ou seja, cria-se maciçamente desemprego, substituindo o trabalhador por tecnologia, e a mão-de-obra ainda necessária para fazer funcionar a tecnologia tem de concorrer com a própria tecnologia. Recentemente, acompanhei uma reportagem na televisão na qual se afirmava estar havendo uma redução brutal de salários, inclusive de pessoal técnico altamente qualificado. Já há engenheiros se proletarizando, sendo tercerizados, indo às fábricas como se fossem empresários oferecendo uma mercadoria. Só que essa mercadoria é constituída pelos próprios serviços que podem executar e não mais sua força de trabalho, embora esta força esteja embutida na mercadoria que oferecem.

ESTUDOS AVANÇADOS - Nessa atual situação, como é que você vê as investidas contra a legislação trabalhista no meio rural?

J.S. M. - Ela não está acontecendo apenas no meio rural, mas também na cidade. Os empresários estão fazendo discursos de desregulamentação da legislação do trabalho, dos direitos sociais, dos direitos trabalhistas adquiridos, porque assim criam o trabalho puro. Ele se torna estritamente aquilo que eles necessitam em termos de força de trabalho, sem qualquer responsabilidade social da empresa.

É um argumento canalha, porque a idéia em relação aos trabalhadores é basicamente a seguinte: abram mão de seus direitos e concorram com a máquina. No meio rural, não se trata de uma volta ao passado. Não se quer voltar, por exemplo, ao tempo do colonato, em que não havia regulamentação da força de trabalho mas havia uma alta responsabilidade social dos fazendeiros porque eles eram os protetores daqueles trabalhadores, ofereciam terra, faziam favores e os ajudavam, mesmo com toda a violência existente nessa relação.

Agora é diferente. Agora os fazendeiros querem desregulamentar mas não querem, por exemplo, oferecer terra para as pessoas trabalharem gratuitamente, como compensação por essa desregulamentação. Eles não estão falando numa reforma agrária compensatória, realizada inteiramente nas mesmas fazendas, para absorver esta mão-de-obra. Aliás, essa proposta seria irrealista, porque no meio rural todo o trabalho já está fragmentado, não se trata mais do mesmo processo de trabalho de antigamente, em que o trabalhador tinha trabalho o ano inteiro. Agora se tem trabalho em épocas específicas, no corte da cana, na colheita do café.

O que se quer é desregulamentar aquilo que é puramente setorial, ou seja, aquilo em que é preciso que haja direitos trabalhistas. Quer-se, efetivamente, promover um retrocesso histórico e não a criação de formas mais humanizadas de relacionamento quanto ao que está acontecendo atualmente, não só no campo mas também na indústria, que está fazendo o discurso da desregulamentação. Aliás, esse discurso está sendo feito no mundo inteiro, em todas as áreas atingidas pela globalização.

ESTUDOS AVANÇADOS - Vamos acabar descobrindo que a escravidão é o horizonte do capitalismo...

J. S. M. -É o que já se tem na índia. Os pais vendem os filhos e se vendem, porque assim o patrão é obrigado pelo menos a sustentá-los. E isto é algo que não estava nas cogitações de ninguém quando discutíamos teoricamente o capitalismo, nem passava pelas nossas cabeças que isso iria acontecer. E não se trata do arcaico renascendo. É uma escravidão nova, é algo absolutamente novo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 13)

Trabalho escravo: do conceito de lucro ao de renda

ESTUDOS AVANÇADOS -Se passarmos dessas considerações, de fato tão terríveis, para uma enésima revisão das relações entre liberalismo e escravidão, poderíamos, talvez, remontar à própria teoria segundo a qual há uma incompatibilidade entre liberalismo e escravidão, e verificar o quanto esta teoria parece ter nascido de um resíduo de admiração do marxismo pela cultura burguesa. Quer dizer, parece que o marxismo, num modelo inicial de O Capital, dá à burguesia uma função extraordinária, de libertação. Criou-se uma cultura marxista, muito coerente, que certamente dura até hoje, que continua a fazer correlações muito fortes entre burguesia liberal e libertação do indivíduo. Entretanto, todas as evidências parecem desmentir a solidez dessa relação. Em que medida haveria a possibilidade de uma releitura de Marx, relativizando e às vezes contrastando diretamente essa vinculação entre burguesia liberal e libertação do indivíduo?

J. S. M. -Justamente aí há uma grande coincidência entre Marx e Weber. Os dois têm exatamente a mesma interpretação a respeito do papel redentor do capital na libertação da pessoa, no aparecimento do sujeito livre, capaz de contratar livremente, e de como ele é positivo para o desenvolvimento do capitalismo.

Marx já havia percebido que as coisas podiam não ser assim. Mesmo em O Capital há uma referência à questão dapeonagem na América Latina, sobretudo no México, onde pessoas que não eram escravas eram, no entanto, endividadas e vendidas pela dívida a outras pessoas, e as dívidas eram herdadas pelos filhos dos trabalhadores, e assim sucessivamente.

Este tema é retomado por Rosa Luxemburgo com mais consistência. Ela estava concretamente preocupada em negar um pouco essas pressuposições iluministas que estão por trás da obra de Marx. Acredito que haja em Marx algumas pistas importantes para pensar esse assunto mas, infelizmente, O Capital é inacabado. Parece que a redação de O Capital foi interrompida exatamente no momento em que ele iria tocar mais de perto no assunto, e logo depois ele morreu. Mas há indicações para se repensar teoricamente essa questão. Marx faz pelo menos uma referência importante para se pensá-la, ao dizer expressamente, no tomo terceiro de O Capital, que o escravo era renda capitalizada.

Ao definir o escravo como renda capitalizada, exatamente como a terra também o é, Marx resgata a dimensão irracional do trabalho escravo não em termos de inviabilização da contabilidade de custos da empresa capitalista e, portanto, da reprodução ampliada do capital em termos racionais e modernos. Entretanto, ao remeter a questão do trabalho escravo à questão da renda, afirmando que este seria similar à renda fundiária porque seria também uma forma de renda antecipada no ato de compra do trabalhador, Marx nos remete ao campo teórico no qual se pode explorar o tema da escravidão, o território da renda e não o território do lucro.

Todo o equívoco dos intérpretes de Marx que aceitaram a idéia de um papel redentor do capital e do capitalismo em relação ao trabalho está baseado no fato de que eles pensam a questão do trabalho escravo no âmbito do lucro, enquanto o próprio Marx afirma ser mais conveniente pensar o problema do trabalho escravo no âmbito da renda territorial, sendo o trabalho escravo similar à renda da terra. Esta seria uma primeira pista.

Na minha opinião, uma segunda pista diz respeito à questão da composição orgânica do capital. Desenvolvo este tópico no segundo capítulo do livro Fronteira, no qual abordo expressamente a questão do trabalho escravo e, particularmente, as bases teóricas dessa escravidão recente. Marx já havia chamado a atenção para a questão da composição orgânica do capital e, sobretudo, para um aspecto importante desta composição que normalmente não é discutido: a fenomenologia da consciência do empresário quando ele organiza seu capital.

Nesse sentido, o empresário não pensa em termos de valor, no sentido marxista, mas em termos de lucro, ou seja: pensa no fenômeno do valor e não no valor stricto sensu, na expressão fenomênica do valor. Ao fazê-lo, estabelece o seguinte: em áreas extremamente atrasadas, como é o caso da Amazônia e de vários países da África e da Ásia, a taxa de lucro tem de ser "x". Ele raciocina de trás para frente, e não como o teórico faz, de frente para trás. Se a taxa de lucro tem de ser "x", o investimento de capital constante, equipamentos etc., tem de ser "y". O trabalho é remunerado com o resíduo dessa composição orgânica, ou seja, não entra contabilisticamente na composição orgânica do capital em termos das necessidades do trabalhador mas em termos da necessidades do capital, o que foi dito por Marx. Com isso, um capital de baixíssima composição orgânica, como é o caso nas remotas regiões de fronteira econômica, aparece e funciona como capital de alta composição orgânica, nos setores mais centrais e modernos da economia.

Quanto mais se desenvolve o capitalismo - e, portanto, mais importante se torna o capital constante -, para que não haja uma exacerbação quantitativa do capital variável - o trabalho - este vai sendo reduzido ao ponto de que chega um momento em que é preciso escravizar o trabalhador para que o capital continue se reproduzindo. E não é mais escravização no sentido clássico da palavra, porque não há um investimento prévio de capital no escravo. O escravo é reescravizado diariamente. Por isso, essa escravidão é muito mais repressiva, muito pior do que a escravidão negra que conhecemos, muito mais violenta e, ao mesmo tempo, ainda se trata de escravidão.

Para se repensar teoricamente essas questões a partir do próprio Marx, retirando o que de ideologicamente iluminista há nele em relação a esse tema, proponho o enfoque sobre esses dois pontos: a questão do escravo como renda e a questão da subordinação do capital variável ao conjunto da composição orgânica do capital.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 12)

Trabalho escravo contemporâneo

Estamos trabalhando com a hipótese de que haja 200 milhões de escravos no mundo hoje, e 200 milhões é muita gente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu relatório de 1993 reconhece a existência de seis milhões de escravos. Nós estamos incluindo crianças, que trabalham como prostitutas na Tailândia e são vendidas na índia, contraem Aids e depois são deportadas pelo governo da índia. Os pais não as aceitam de volta - foram eles que venderam as filhas -, e essas crianças precisam urgentemente de programas de recuperação e de reeducação para assegurar um mínimo de decência em suas vidas, enquanto elas sobreviverem.
O pedido mais dramático que recebemos em 1997 veio dos pigmeus do Camerum, que estão sendo escravizados pelos bantos, povo do qual sairam muitos escravos para o Brasil. Crianças pigméias estão sendo vendidas, compradas ou caçadas. No Sudão ainda se fazem expedições de caça para prender pessoas e vendê-las depois. Este é um quadro que desmente completamente essa enorme e desonesta fantasia a respeito do papel criador do capitalismo: inovador, modernizador, difusor da cidadania, uma mentalidade de classe dominante, de país rico. O que nós estamos observando é que a verdade não é essa.

Quando o secretário-geral nomeou a mim e à representante da Inglaterra como novos membros, ele mandou aos governos um apelo desesperado, chamando atenção para o fato de que o número de escravos no mundo estava crescendo muito rapidamente em função da globalização, com a difusão do modelo asiático de desenvolvimento capitalista, totalmente diferente do modelo clássico porque é baseado num esquema de transferência de todos os ônus sociais e econômicos para o próprio trabalhador.

Esse modelo cria diversas situações específicas. Primeiro, uma situação de extrema concorrência entre os próprios trabalhadores; em segundo lugar, o uso desta concorrência como técnica de rebaixamento de salário. As pessoas começam a aceitar trabalhar simplesmente pela comida e alguns, nesse limite, começam a vender os filhos. Existe comércio de filhos em vários lugares do mundo.

Na China socialista está surgindo um problema: ela está sendo atingida pelo modelo de compra de mulheres, por parte dos camponeses, devido a uma carência de mulheres para o matrimônio e para o trabalho. Em função da política de controle de natalidade, os pais mataram deliberadamente as meninas para que apenas os filhos do sexo masculino sobrevivessem, o que criou esta carência. O modelo de trabalho escravo, de compra e venda de pessoas, está se difundindo em toda a parte. Tanto na antiga Rússia, no Cáucaso, como nos Estados Unidos, há o aparecimento de casos de escravidão.

O quadro é absolutamente alarmante, mas a esquerda parece estar discutindo neoliberalismo e globalização da maneira mais fantasiosa que se possa imaginar. Não está fazendo pesquisas sobre as conseqüências mais dramáticas desse novo processo e não consegue desenvolver argumentos de natureza moral, caindo no nacionalismo, que não é um bom argumento para combater a escravidão.

É o que estamos vendo no Brasil. Seria necessário, justamente, abrir a consciência para o amplo processo dedestroçamento moral das populações pobres do mundo inteiro, inclusive nos países desenvolvidos. Este é um fato muito grave.

ESTUDOS AVANÇADOS -Se um leitor da revista soubesse, por meio de pesquisas ou contatos, de casos de escravidão, o que deveria fazer, concretamente, em termos de denúncia e de processo?

J. S. M. - Em primeiro lugar, deve verificar a consistência e a procedência da denúncia. Têm havido denúncias em lugares de acesso remoto e difícil que, ao serem verificadas, não são verdadeiras. No Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu formalmente, em 1996, num pronunciamento pelo rádio, a persistência da escravidão no país. Foi a primeira vez que isso aconteceu desde 1888. Na mesma ocasião, ele criou um grupo interministerial, o Gertraf (Grupo de Repressão ao Trabalho Forçado), no Ministério do Trabalho.

É um grupo executivo com poderes acima de todos os delegados regionais de trabalho, que em geral não estavam combatendo a escravidão. Ele é subordinado diretamente ao presidente da República e mobiliza, ao mesmo tempo, todos os órgãos que, por lei, estão destinados ao combate desse tipo de situação, inclusive a Polícia Federal. Normalmente, eles são eficazes com relação a denúncias.

A denúncia também pode ser mandada à Comissão Pastoral da Terra, em Goiânia, local de funcionamento de seu secretariado nacional. Com relação a questões de trabalho escravo, a Comissão Pastoral da Terra tem trabalhado em colaboração com o Gertraf, e geralmente repassa a informação e colabora para que o caso seja apurado. O responsáveis são punidos e os trabalhadores libertados e indenizados.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 11)

A ONU e o trabalho escravo

ESTUDOS AVANÇADOS - Essas múltiplas situações de escravidão hoje são de domínio público. Pode-se lê-las nos jornais. Soube que, recentemente, você foi admitido a um grupo internacional cuja finalidade é a denúncia, o estudo da escravidão. De que grupo se trata?

J. S. M. - Em 1991, a Assembléia Geral das Nações Unidas criou a Comissão de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão. Já faz uns 20 anos, aproximadamente, que a ONU reconhece que existe escravidão em vários países; em alguns, a escravidão era oficial e legal, como o caso do Sudão e da Mauritânia. Porém, conforme o problema foi se agravando, em vez de ser controlado e reduzido foi se tornando cada vez maior. Por essa razão, a Assembléia Geral decidiu criar um grupo que organizaria a pauta de trabalhos do chamado Grupo de Trabalho sobre o Trabalho Escravo, um grupo que envolve embaixadores, ONGs e outros grupos.
O grupo foi criado em 1992 pela Assembléia Geral, e é constituído por cinco pessoas, uma de cada continente, nomeadas pelo secretário-geral. Fui nomeado representante das Américas em 1996. Somos especialistas, pessoas que nos seus respectivos países e continentes têm algum trabalho relevante em relação ao tema. Nós devemos nos reunir em Genebra duas vezes por ano para examinar os casos, ocorrências, denúncias e pedidos de socorro.

Entre outras coisas, temos a tarefa de viabilizar que as vítimas possam se apresentar diretamente ao órgão da ONU que trata do assunto, que é o Grupo de Trabalho, que faça suas denúncias e peça interferência, podendo, inclusive, convocar os embaixadores e exigir dos respectivos governos o cumprimento dos tratados internacionais de 1926 e 1957, assinados por quase todos os países. Ao fazê-lo, esses países renunciaram à escravidão, comprometendo-se a combatê-la.

O grupo tem uma eficácia muito limitada por causa da falta de recursos. Quando nos reunimos em abril último, tínhamos umas duas dezenas de denúncias, vindas especialmente da África e da Ásia. Pedidos de socorro, de ajuda para projetos de intervenção para libertar pessoas, para reeducar pessoas, entre outros. Dispúnha-mos apenas de US$ 12.500 e o total dos pedidos chegava a US$ 700.000, ou seja: não tínhamos absolutamente nada.

Em nosso trabalho, tem sido difícil sensibilizar as pessoas, especialmente governos, para que contribuam para o Fundo da ONU para que esta possa interferir efetivamente no trabalho educativo, no trabalho de dissuasão, e, inclusive, quando for o caso, na libertação de pessoas vitimadas pela escravização. Como temos acesso direto ao plenário da Assembléia da ONU, tanto em Nova York como em Genebra, uma parte de nosso trabalho é ir aos plenários, já que os embaixadores não vêm a nós, e sentar ao lado de cada um, conversando com eles individualmente e pedindo que se interessem pelo problema. Para se ter uma idéia da gravidade do problema, durante anos, apenas um governo do continente americano - o qual eu represento - deu uma pequena contribuição: o governo do Chile, que doou US$ 2.500, e nenhum outro. Conversando com o embaixador de Cuba, a quem fui pedir que pelo menos comparecesse a nossa reunião para tomar conhecimento da gravidade do problema, fiquei muito decepcionado. Apesar de não ser esse o caso de Cuba, está aparecendo trabalho escravo nos Estados Unidos, por exemplo. Primeiro, o embaixador cubano tentou me descartar, e depois disse que iria à reunião - uma questão de dez minutos para ouvir um relato - e não foi. A mesma coisa aconteceu com outros governos. Fui atrás do embaixador da Itália, ele me recebeu muito formalmente e disse que a Itália, no momento, estava passando por grandes dificuldades e não poderia dar uma contribuição.

As contribuições solicitadas são ridículas. O que nós esperamos para o Fundo são contribuições governamentais de US$ 1.000. Quer dizer, se os governos derem o dinheiro, teremos recursos para fazer alguma coisa. Na conversa com o embaixador italiano, quase fiquei com vontade de dar dinheiro para ele salvar o governo de seu país. Tive que dizer para ele: "Não esqueça que a Itália foi uma grande exportadora de camponeses, que foram trabalhar em condições de servidão na América, especialmente no meu país". A Itália é emblemática, e precisa entrar num processo de ajuda desse tipo. Houve um cidadão italiano que doou ao Fundo US$ 500, e o governo italiano não deu nada. É algo muito complicado.

O governo brasileiro ainda não contribuiu, apesar de ter um programa bastante interessante de combate à escravidão; aliás, um programa eficiente, que está dando certo. Falei com o secretário da embaixada e pedi que o governo brasileiro se interessasse, para dar um exemplo nessa história. Nossa situação, enfim, é muito difícil, pois temos poucas doações. Cada um de nós está se esforçando para ver se convence esses governos a fazer alguma coisa.

Dos poucos representantes diplomáticos de organizações não-governamentais que atenderam nosso pedido, a embaixatriz da Índia compareceu a uma de nossas reuniões, pela primeira vez em oito anos, e fez uma manifestação vigorosa de apoio ao nosso trabalho. O presidente da comissão também é da índia. Compareceu também um jovem representante dos Estados Unidos, ligado aos direitos humanos, que esteve na reunião por dez minutos, e ele disse: "Os governos não contribuirão, não se iludam a respeito disso. Eles criam as comissões na Assembléia Geral para se desvencilhar da pressão da opinião pública nos seus respectivos países, mas depois, de fato, não dão dinheiro, não contribuem e não asseguram a execução dos projetos. Minha sugestão a vocês é que mobilizem a sociedade civil dos diferentes países para que ela se inquiete com a imoralidade da persistência da escravidão".