Teoria da dependência e teoria da globalização
ESTUDOS AVANÇADOS - A teoria da dependência, formulada pela sociologia latino-americana no final dos anos 60, foi, segundo certa perspectiva, um desdobramento das teorias do imperialismo. Como estas, o seu ethos político teria sido o da denúncia da onipotência do mercado nas relações internacionais. Até que ponto a teoria da globalização, vigente nos últimos anos, significaria uma atitude de aceitação, uma atitude de conformismo em relação à mesma realidade que os teóricos da dependência diagnosticavam como um desequilíbrio, uma injustiça, um mal a ser reparado? Em outros termos: não terá havido uma direitização conformista e oportunista no modo de apreciar o fenômeno da dependência?
J. S. M. - Tenho a impressão de que a preocupação com a dependência, que tem vários focos de origem na América Latina, teve um de seus focos mais importantes na Faculdade de Filosofia da USP, no grupo de Florestan Fernandes. Ele mesmo se considerava de certo modo um dos precursores do interesse pelo tema da dependência. Claro que a pessoa que mais contribuiu de forma sistemática na sua formulação, como se sabe, foi Fernando Henrique Cardoso. Mas para entender essa preocupação com a questão da dependência, o modo como ela se desenvolveu na USP, é preciso levar em conta as linhas básicas de compreensão da realidade latino-americana e brasileira, sobretudo por parte desse grupo.
Pode-se dizer que há uma tendência nacionalista e antiimperialista clara e presente no conjunto da obra dos autores da Faculdade de Filosofia da USP nessa época. Não sei se era necessariamente uma preocupação de esquerda, no sentido que a palavra possa ter hoje. Naquele momento ser esquerdista ainda não tinha assumido a dimensão mística e "religiosa" que acabou assumindo durante a ditadura e persiste até hoje. Se, de um lado, era um antiimperialismo próximo das posições dos dois partidos comunistas, embora difuso, de outro lado, era também um nacionalismo que ganhava seu melhor sentido nas posições da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina, das Nações Unidas), especialmente na obra de Celso Furtado, e não nas posições do nacionalismo do Partido Comunista, porque antiimperialista e, portanto, porque pró-soviético. Era nesse âmbito cepalino que se situavam as posições de Fernando Henrique Cardoso, no meu modo de ver. Por outro lado, havia, também, uma postura crítica de esquerda em relação ao Partido Comunista Brasileiro e ao marxismo vulgar, o que aparecerá mais tarde, em 1968, na revista de curta duração Teoria e Prática, editada por um pequeno grupo de jovens professores da Faculdade de Filosofia. No período imediatamente anterior à ditadura, havia no grupo de Florestan Fernandes uma clara preocupação com um projeto nacional de desenvolvimento. Mas, essa preocupação não tinha coloração ideológica. Ela decorria das possibilidades de transformação social que o próprio conhecimento científico abria. Por isso, insisto sempre, o projeto Economia, e sociedade no Brasil (Análise sociológica do subdesenvolvimento) sintetizou essas preocupações de implicação política. Esse foi o primeiro texto em que o grupo da Faculdade de Filosofia disse sociologicamente o que poderia acontecer com a sociedade brasileira se a situação se mantivesse aquela. Tratava-se de um projeto que pretendia articular as pesquisas desenvolvidas pela Cadeira de Sociologia I. Nele, os problemas nacionais são problematizados sociologicamente. Mas para onde estava indo essa sociologia?
Era a proposta de uma sociologia enraizada. Nesse documento fica clara a implícita oposição à idéia de uma sociologia colonizada, de importação, sem diálogo com os problemas nacionais, que acabou se difundindo depois das aposentadorias compulsórias e repressivas. Hoje, a sociologia brasileira, com algumas exceções, é uma sociologia colonizada e desenraizada; portanto, descaracterizada. Poderia ser aplicada aqui, na China, em qualquer outro lugar: o resultado seria exatamente o mesmo. Mas naquela época, por volta de 1962, o grupo de Florestan procurava decifrar as possibilidades e limitações daquilo que já se afigurava como inserção dependente do Brasil no mundo capitalista. Examinava as outras alternativas, mas não descuidava dessa que ia ganhando visibilidade. Justamente por isso, o projeto Economia e Sociedade no Brasil pressupunha uma certa coalisão dos diferentes grupos e classes sociais, um certo ecumenismo no diálogo da sociologia com as diferentes classes sociais, uma democrática proclamação do direito à diferença no interior de um projeto histórico unificador. Dessas preocupações resultou uma doação em dinheiro da Confederação Nacional da Indústria para fundação do Cesit (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho). E o próprio governador Carvalho Pinto apoiou a proposta criando o Cesit por decreto numa audiência em que recebeu o professor Florestan Fernandes. Uma leitura esquerdista e radical da história do grupo da USP certamente a deformaria e dificultaria compreender a riqueza de possibilidades históricas presentes nas idéias e atuações da "escola sociológica de São Paulo" e no momento histórico em que essas coisas estavam acontecendo. Justamente por isso é que considero completamente equivocada a suposição de "direitização" quando se passa da teoria da dependência para a teoria da globalização. A lógica da globalização já estava lá naquelas preocupações de esquerda e claramente presentes nas idéias de Fernando Henrique.
No fundo, parece que a questão era a de saber qual a oportunidade do Brasil se transformar num país moderno, democrático e desenvolvido, com justiça social, no quadro da dependência e da globalização.
Uma boa indicação do que digo é que, como afirmei antes, o projeto Economia e sociedade é, de certo modo, o quadro sociológico mais amplo de referencia do governo de Fernando Henrique Cardoso, um projeto de Florestan Fernandes que Fernando Henrique e os outros assistentes de Florestan ajudaram a conceber e escrever. Os tempos e transformações históricos envolvidos nos processos sociais não podem e não devem ser reduzidos a uma temporalidade única e evolucionista, como acontece na polarização simplificadora direita-esquerda. No processo real, os tempos históricos são vários e desencontrados. Há necessidades sociais e históricas que se situam numa temporalidade determinada que não é a temporalidade da política partidária. São necessidades que só se resolvem acima das facções, dos partidos e das polarizações partidárias e ideológicas. A modernização da sociedade e do Estado brasileiros, considerados no projeto mencionado do grupo de Florestan, é uma necessidade "de esquerda", no sentido de que é uma necessidade histórica que quebra o poder das oligarquias e da dominação patrimonial em favor da sociedade, da emancipação do povo dos vínculos clientelistas e populistas, em favor da participação democrática de todos. É um projeto urgente e em execução.
Ao mesmo tempo, a sociologia como ciência não pode ceder aos voluntarismos. Se o fizesse deixaria de ser ciência. Nesse sentido, como gostava de reconhecer Florestan, ela constitui a autoconsciência científica da sociedade. Por isso, digo eu, ela também se situa numa das temporalidades do processo histórico, que não é a temporalidade dos partidos e dos confrontos eleitorais. Ela se situa no âmbito da consciência social que vislumbra obstáculos históricos e se situa, também, no âmbito da consciência das possibilidades da História, mediação da práxis transformadora que abre caminho entre os obstáculos sociais para que o Homem se emancipe de suas necessidades, de sua miséria. O voluntarismo político pode se equivocar e freqüentemente se equivoca, como vemos nestes nossos dias. Nesse caso, a ideologia pode ser de "esquerda", mas a ação é de "direita", pois acaba viabilizando a realização do projeto político dos que se opõem à emancipação humana a que me referi.
A globalização já estava pressuposta e pressentida no projeto de pesquisa de Karl Marx no século XIX, quando ele diz que a mundialização do mercado será um dos momentos de sua análise. Em diversos momentos, ela está claramente presente na obra marxiana. E não se trata da proposta de uma teoria do que mais tarde os marxistas definiram como imperialismo. Para Marx já estava claro que era impossível explicar sociologiamente o desenvolvimento do capitalismo inglês sem referência à mediação do arrendatário irlandês ou do escravo negro nos Estados Unidos. A concepção metodológica de totalidade, que pressupõe contradição e diversidade, em Marx pressupõe também a mundialidade dos processos históricos investigados. Embora, evidentemente, o singular e diferente tenha sua própria força histórica, sua dinâmica e sua presença na ação e nos movimentos sociais.
Na década de 60, Florestan e seu grupo incluíam em seus estudos a preocupação com os desdobramentos possíveis do processo histórico, do desenvolvimento brasileiro. Isso tinha muito a ver com o reconhecimento da necessidade de que a sociedade brasileira desvendasse a situação social em que se movia e as condições históricas dos diferentes modos de intervenção em seus rumos. Tratava-se de encarar a sociologia como um serviço à sociedade. Falava-se em burguesia nacional. Havia na sociedade uma difusa esperança política de que talvez existisse uma burguesia disposta a fazer e executar uma proposta alternativa ao modo como o Brasil vinha se situando em face do capital internacional, da penetração e dominação do capital estrangeiro. Como contrapartida preocupavam-se os cientistas sociais com o atraso social e econômico como um problema nacional urgente. Tanto a pesquisa que Fernando Henrique fez sobre os empresários industriais quanto a pesquisa nacional sobre os grupos econômicos multibilionários, que Maurício Vinhas de Queiroz coordenou na antiga Universidade do Brasil, ambas mais ou menos na mesma época, mostraram que a burguesia nacional era uma ficção, e, por implicação, uma esperança vã das esquerdas. Nos termos de hoje, a inserção do Brasil na globalização já era evidente. Esse era o dado político.
Fernando Henrique retornou a esse tema mais tarde numa entrevista que deu a Lourenço Dantas Mota, publicada depois pelo Senado Federal, na qual faz uma pequena revisão dessa história. Entre outras coisas, sua pesquisa procurava identificar objetivamente o que era a burguesia nacional no Brasil. Naquele momento, havia dois empresários que com certeza poderiam se comprometer com um projeto alternativo, e mais ninguém. Todos os outros estavam envolvidos em um projeto de inserção no capital internacional.
Desenvolvimento nacional versus desenvolvimento global
Nessa fase, eu estava realizando em São Paulo uma parte da mencionada pesquisa de Maurício Vinhas de Queiroz sobre os grupos econômicos multibilionários. Coube-me entrevistar, juntamente com Antônio Carlos de Godoy, o empresário Luís Dumont Villares, o patriarca do Grupo Villares. Isso foi logo após o golpe de 1964. Uma das perguntas que lhe fizemos foi justamente sobre a burguesia nacional, já que ele era considerado um de seus membros. Ele afirmou claramente que a burguesia nacional era uma idiotice (usou essa palavra). Na perspectiva de um capitalismo autônomo, se quisesse tecnologia para sua empresa, teria que montar um laboratório de pesquisas e de criação tecnológica, com custos altíssimos que não teria condições de assumir sozinho. Dessa forma, preferia ir à Suécia ou à Alemanha, por exemplo, e comprar a tecnologia da Siemens, pagando 1% de seu lucro total com toda assistência, tecnologia e inovação necessárias, sem ter que recorrer a mais ninguém. Villares afirmou, ainda, que, para um empresário capitalista como ele, não seria racional aventurar-se a criar laboratórios e centros autônomos de produção de tecnologia para enfrentar a concorrência internacional.
Amadurecia a constatação de que o imperialismo também sofrerá transformações profundas como dominação econômica e política, aprendera com as resistências nacionais e de classe, desenvolvera estratégias globalizantes, abria espaços de parceria subalterna. Já não era necessariamente um inimigo do desenvolvimento nacional, mas um sócio compulsório desse desenvolvimento. Nessa perspectiva, oferecia aos países subdesenvolvidos a alternativa de tornarem-se sócios-menores do desenvolvimento capitalista. Lembro bem dessa expressão porque era freqüentemente usada por membros do grupo de São Paulo: ia ficando claro que o capitalismo abria um espaço de integração e participação aos países subdesenvolvidos (ou em vias de desenvolvimento, como se começava a dizer) o espaço de sócios-menores do desenvolvimento capitalista globalizado e internacional. Fernando Henrique foi um dos primeiros cientistas sociais a perceber a mudança que estava ocorrendo.
No fundo, a concepção de dependência que se gestava naquele momento não se ligava à categoria de imperialismo. Ela representava outra coisa e outra concepção do relacionamento entre as nações do mundo capitalista. Ela implicava num certo projeto de reinserção lateral na economia capitalista e, sobretudo, num projeto de exploração de nossas vantagens comparativas num mundo globalizado na condição que nos restava, a de economia dependente. A alternativa representada por essa inserção, que a ditadura militar, afinal, acelerou, dava-se no plano histórico. Bloqueadas as outras possibilidades, a do socialismo ou a do capitalismo autônomo, era essa a alternativa historicamente mais plausível. O que, afinal, se confirmou na própria história dos países de socialismo de Estado.
No caso brasileiro, discutia-se a experiência do governo Campos Sales, na virada do século. Fernando Henrique chegou até mesmo a escrever um trabalho sobre o assunto. O governo Campos Sales, entrando na política liberal exportada pelo colonialismo da época, acabou levando o país à falência: teve que empenhar em favor dos credores as rendas da alfândega do Rio de Janeiro. Ao simplesmente copiar a política econômica liberal dos países dominantes, o país produziu aqui efeitos econômicos contrários ao que ocorria nas economias metropolitanas. O caso do governo Campos Sales sugeria a importância de uma outra modalidade de orientação econômica a um país como o Brasil, por se tratar, justamente, de uma economia dependente.
No meu modo de ver, com a passagem da teoria da dependência para a teoria da globalização não houve uma ida para a direita, porque aquela não era, necessariamente, uma perspectiva de esquerda, e nem a atual perspectiva é, necessariamente, uma perspectiva de direita. O que há é a tentativa de ajustar o desenvolvimento do país a possibilidades reguladas fora dele, no plano internacional, pelos grandes conglomerados econômicos, pelos governos estrangeiros dos países ricos. Tenho muita resistência à idéia de colocar os rótulos direita/esquerda na questão.
Naquela época, a crítica à situação de dependência era uma crítica de esquerda, mas, ao mesmo tempo, era uma proposta de adesão estratégica. Um país como o Brasil teria condições de fazer exigências, de cobrar tratamentos preferenciais, agindo simultaneamente no plano da economia e da política internacionais. Era a esquerda que falava em dependência imaginando que estava falando de imperialismo, e na verdade não estava falando de imperialismo mas do ajustamento da economia nacional na economia globalizada, que era uma coisa diferente.
Hoje, na minha opinião, não se trata exatamente de uma questão de direita. Trata-se de uma questão política que, de qualquer modo, se inspira em um debate que vem da esquerda. Mas afirmar isso seria reduzir excessivamente o que está acontecendo. Aliás, Fernando Henrique Cardoso foi um dos primeiros a falar sobre globalização. Ele estava no Chile quando escreveu um trabalho sobre o assunto, e sempre teve uma percepção mais rica do que Florestan Fernandes a respeito dessas questões, talvez devido à sua inserção e mobilidade internacionais.
Essas questões estavam, portanto, presentes no grupo de São Paulo. Não eram pura e simplesmente idéias. Não se tratava de um debate de produção de doutrinas, mas de investigar a realidade brasileira, o que ela oferecia ou não, quais suas possibilidades históricas. A pergunta que Fernando Henrique Cardoso fez no fim de sua tese de livre-docência, "subcapitalismo ou socialismo?", propôs claramente as alternativas que estavam diante de nossos olhos. As pesquisas que o grupo estava desenvolvendo mostravam que estávamos indo na direção do subcapitalismo, isto é, do capitalismo dependente. O golpe de Estado, aliás, selou politicamente essa alternativa e esse destino. Depois de tanto tempo e tantas transformações, seria um completo absurdo político e econômico tentar rever e anular a História feita e consumada, como muitos ingenuamente pretendem. Antes de tudo é preciso retomar a preocupação com a praxis, voltar ao sentido das propostas teóricas e interpretativas que a "escola sociológica de São Paulo" havia feito, tendo em conta o novo contexto histórico, o fechamento de algumas possibilidades e a abertura de outras, mas sobretudo retornar ao paradigma do reconhecimento das necessidades sociais e históricas como fundamento de uma sociologia enraizada.