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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 8)

História e memória dos excluídos

ESTUDOS AVANÇADOS - Entre seus interesses, há uma forte inclinação para recuperar a memória de segmentos da população, de grupos, de espaços ou de tempos que normalmente não aparecem em uma história institucional, ou em uma história política, no sentido convencional da palavra. Um de seus estudos, que parece particularmente rico em implicações teóricas apesar de ser fortemente enraizado na observação, é Subúrbio, escrito sobre a memória de São Caetano. Você poderia dizer alguma coisa sobre o livro, sua gênese, se ele integra um projeto maior, e a relação entre "memória dos esquecidos", paradoxalmente, e memória do subúrbio e a história?

J. S. M. - O conjunto dos meus trabalhos é marcado por uma preocupação de natureza metodológica com aqueles que estão à margem, os quais eu costumo chamar de vítimas, aquelas pessoas que não estão no centro da percepção dos acontecimentos dominantes, que aparentemente não estão envolvidas neles embora de fato estejam, pessoas que normalmente não são consideradas como informantes validos do acontecer histórico, testemunhas dos acontecimentos históricos que possam merecer uma atenção especial por parte dos pesquisadores. Essa preocupação é própria do grupo de sociologia da USP. Vários dos estudos do grupo de Florestan Fernandes foram feitos com quem estava à margem: o negro, o jovem, enfim, populações que normalmente não merecem atenção de um pesquisador convencional, a menos que se tornem um problema social.

Minha preocupação com o subúrbio está relacionada ao fato de que eu acreditava ser importante e necessário fazer um recorte em um espaço muito rico de experiências históricas, apesar de irrelevante do ponto-de-vista da consciência dominante, inclusive da consciência dominante dos intelectuais. Achava importante observar como o processo histórico se dá em um determinado espaço, historicamente irrelevante. Saint-Hilaire teve uma curiosidade parecida quando passava pelo Vale do Paraíba, na época da Independência: ele queria saber como é que as pessoas daquela região estavam vendo a Independência do país, que havia acabado de ser proclamada. Aparentemente, as pessoas não estavam vendo nada, porque a Independência não havia sido feita nem por elas e nem para elas.

Queria trabalhar com essa população tomando como referência um longo período de tempo num mesmo espaço. Não queria fazer uma colagem, entre espaços, que fosse artificial. Dessa forma, nasceu um projeto, ainda em execução, de estudar o subúrbio. Comecei pelo segundo volume, o qual eu tinha possibilidade de escrever mais imediatamente. Mas há também um primeiro e um terceiro volumes, parcialmente escritos.

A idéia é ver como a história atravessa a vida de pessoas bem concretas. Pessoas como eu, como as pessoas que conheci quando trabalhava na fábrica. O que é história para essas pessoas? Evidentemente, há neste ponto uma insurgência contra uma tese, muito cara a certos grupos de esquerda, de que o povo faz sua própria história mas não sabe que a está fazendo, e que, portanto, alguém tem de tomar as decisões a respeito do processo histórico em nome dele. Minha idéia era verificar o quanto o povo é, de fato, omisso em relação ao processo histórico, o quanto o processo histórico é abrangente para essa massa de população condenada ao trabalho, a viver a rotina da vida cotidiana, mas que os teóricos baniram do fazer História.

Essa preocupação nasceu, evidentemente, de uma experiência pessoal, como muitas vezes acontece em Ciências Sociais. Como já falei no início, nasci no subúrbio, cresci dentro de uma fábrica, tornei-me adulto dentro de uma fábrica. Para mim, portanto, a classe operária não é uma ficção teórica. A classe operária é um povo real, vivo, com necessidades, paixões, sonhos, erros e acertos.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 7)

Vida privada e vida cotidiana: diferenciações

ESTUDOS AVANÇADOS - Voltemos à distinção que você faz entre história da vida privada e sociologia do cotidiano. Gostaria que ela pudesse ser amplificada, porque há um pressuposto de que uma coisa implica na outra. Você poderia formalizar, de outra maneira, essas relações? Não seria válida uma história da vida privada?

J. S. M. - Ela é válida na perspectiva que os historiadores estão adotando. Acho menos válida a proposta de uma história da vida cotidiana, um fenômeno essencialmente moderno, especialmente quando se projeta essa história no tempo do Brasil Colônia ou da Europa anterior à Revolução Francesa. A vida cotidiana começa a aparecer, com as características que lhe são próprias - alienação, manipulação -, neste século, em função da industrialização, da mundialização do mercado, do domínio da mercadoria como mediação na vida das pessoas, da coisificação da pessoa, características muito próprias desta época.

Os historiadores trabalham com a idéia de vida cotidiana enquanto rotina diária. Mas a vida cotidiana, a cotidianidade no sentido sociológico, não é apenas isso, e nem é fundamentalmente isso. Tomo como referência o famoso texto de Philippe Ariès no primeiro volume da História da Vida Privada, que desencadeia a preocupação com a história da vida privada. Não temos em todas as classes sociais nem em todas as sociedades aquelas características sociológicas da organização da família que levam ao aparecimento de um estilo de vida que possa ser chamado de vida privada.

Além disso, a vida cotidiana, sem dúvida, passa pela rotina, mas não necessariamente pelos ambientes íntimos da casa. Ao contrário, se as preocupações de Aries forem levadas ao extremo, desdobrando-se no trabalho de alguns seguidores, o quarto, por exemplo, lugar da intimidade, é o lugar menos cotidiano da vida moderna. Ali não há nada de cotidiano. O quarto é lugar do que? O prazer, o desejo, a alegria, todos eles realidades anticotidianas por excelência.

A vida cotidiana é amarga, reprodutiva, mecânica, sem rupturas. Ela tende à instrumentalização da pessoa. Além disso, a vida cotidiana passa pela esfera do trabalho, do qual não se pode falar como vida privada a menos que seja reduzido à idéia de contrato. A vida cotidiana está na fábrica, no trabalho, na rua, na casa, mas não estáinteiramente na casa, na rua, no trabalho, nos lugares onde a contradição se faz mais viva e o desafio à transgressão se torna mais significativo. A vida cotidiana se quebra na transgressão. A vida cotidiana se quebra na revolução. A vida cotidiana se quebra no rompimento daquilo que é propriamente rotineiro. Onde existe desejo e alegria não há vida cotidiana no sentido sociológico com que é possível trabalhar essa questão.

Vejo um enorme desencontro entre vida cotidiana e vida privada. É necessário separar as duas coisas. Na verdade, a vida cotidiana pensada a partir da cotidianidade - numa era, como esta, dominada pela vida cotidiana - nega a vida privada. É exatamente o oposto da vida privada no sentido de que a vida privada implica no reconhecimento do indivíduo, da individualidade, dos direitos pessoais, do cidadão. A vida cotidiana é a negação de absolutamente tudo isso. Ela homogeneiza, manipula, coisifica, e assim por diante.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 6)

Por uma sociologia da vida cotidiana

ESTUDOS AVANÇADOS -Vamos passar a um temário que tem caracterizado sua carreira intelectual. A partir de um certo momento desse percurso, você passa a se dedicar a estudos que se poderiam subordinar, lato sensu, à expressão "sociologia do cotidiano". Gostaria que você dissesse alguma coisa sobre esta verdadeira vocação de estudos: quando começa, quais suas motivações, que relações tem com a tradição sociológica da USP ou em que medida inova essa mesma tradição e, sobretudo, que relações tem com todo um movimento de história nova, história das mentalidades, que a partir dos anos 70 tende a substituir a história das estruturas impessoais?

J. S. M. - Minha preocupação com a vida cotidiana e com a possibilidade de uma sociologia da vida cotidiana está diretamente ligada a uma característica importante da sociologia na USP, em especial no grupo de Florestan Fernandes, que é de fazer uma sociologia de preferência não-amarrada em questões estruturais, institucionais.

O livro de Florestan sobre a A Integração do Negro na Sociedade de Classes, sua tese de cátedra, é um trabalho que solicita, amplamente, que se lide de maneira mais sistemática com a questão do cotidiano, do imediato, do fenomênico. De certa maneira, esse tema já estava proposto ali, e em vários outros trabalhos de diferentes autores. Os trabalhos de Marialice Mencarini Foracchi e de Octavio Ianni, e até um pequeno trabalho de Fernando Henrique Cardoso sobre Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, posterior a sua saída da universidade, já indicam a importância de começar a refletir sobre esse problema.

Em 1975, comecei a dar um curso de Sociologia da Vida Cotidiana, na USP. Lembro claramente que, naquela época, Luiz Pereira, que estava bastante longe dessas preocupações, disse: "Esta é uma proposta impertinente". Foi o comentário que ele fez quando apresentei a proposta do curso ao conselho departamental. Mas a verdade é que justamente nos anos 70, não só no Brasil mas em outros países, o cotidiano começou a dominar o processo histórico. Os mecanismos de reprodução das relações sociais, mecanismos de escamoteamento das possibilidades históricas da sociedade, passaram a dominar os processos de produção do novo e das possibilidades de ruptura inovadora da vida social. A rebelião juvenil de 1968, em vários lugares, nos colocou em face da nova importância histórica da vida cotidiana e suas contradições.

Essa importância aparece nos trabalhos de diferentes autores, em diferentes lugares, com enfoques variados, como por exemplo os meios de comunicação de massa, os modernos mecanismos de manipulação da opinião pública, entre outros. Na verdade, o problema era mais complicado porque não se limitava ao âmbito da formação da sociedade de massas, mas interferia efetivamente nos mecanismos miúdos de vida de amplas parcelas da população que não estavam propriamente mergulhadas nesse mundo novo, manipulado pela engenharia da comunicação.

Resolvi organizar minhas idéias em torno desse tema. Li vários autores, os poucos e disponíveis que haviam dado alguma contribuição ao conhecimento do assunto. O mais importante deles, sem dúvida, foi Henri Lefebvre. Foi ele quem, pouco depois do fim da Segunda Guerra, propôs que os marxistas começassem a se preocupar com a questão da vida cotidiana porque a vida cotidiana estava se transformando no instrumento de bloqueio das possibilidades de transformação da sociedade em uma sociedade nova e justa. Comecei a trabalhar a partir dessas motivações: de um lado, a própria tradição do grupo de Florestan Fernandes, que não havia lidado sistematicamente com esse tema, mas havia se aproximado dele várias vezes. De outro, a preocupação com a vida cotidiana como aparecia em diferentes autores de outros lugares do mundo, especialmente nos Estados Unidos e na Europa.
Nos Estados Unidos também houve essa preocupação em grupos de esquerda, mas não foi uma preocupação eficaz. Os americanos não produziram grandes e fundamentais trabalhos sobre o assunto. Em compensação, havia a tradição fenomenológica, sobretudo do interacionismo simbólico de Blumer, dos descendentes teóricos de George Mead, pessoas que estavam fazendo uma sociologia que trabalhava com o cotidiano embora não pretendesse ser uma sociologia da vida cotidiana. A figura mais importante nesse movimento foi Erving Goffman, com os trabalhos da chamada dramaturgia social. Mais recentemente, destacou-se Harold Garfinkel e a engenharia manipulativa da sua etnometodologia, que tem sugestões metodológicas importantes.

Tentei reunir essas questões - aquilo que poderia ser reunido - numa perspectiva dialética, tentando trazer para uma reflexão dialética a preocupação com a vida cotidiana, perspectiva de Henri Lefebvre, de Agnes Heller. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, por esse caminho não me aproximo da história das mentalidades, mas me afasto dela. Recentemente, escrevi um comentário crítico a um texto de Vainfas, para publicação na Revista do Museu Paulista, em que digo que ele se equivocou ao tratar como expressões de um mesmo fenômeno a vida privada e a vida cotidiana. Nos termos da história das mentalidades esses "conceitos" são considerados equivalentes e intercambiáveis. Na perspectiva de uma sociologia da vida cotidiana, são distintos e expressões de realidades substantivamente diversas.

A vida cotidiana é, num certo sentido, a negação da vida privada, e não se restringe a aspectos que Lê Goff e Duby enumeraram a respeito de usos e costumes dos povos. Eles lidaram com a questão do cotidiano a longo termo. A vida cotidiana, na perspectiva sociológica, é um fenômeno muito recente, que ganha corpo de maneira assim dramática após a Segunda Guerra Mundial. Está ligada ao aparecimento da cotidianidade, que não se confunde com a vida cotidiana. Quer dizer, o aparecimento da cotidianidade é a transformação da realidade social numa realidade de manipulação, de escamoteamento, de alienação moderna, alienação levada ao extremo de suas possibilidades, de mistificação da vida. Estou trabalhando com isso porque esses mecanismos também estão muito presentes na sociedade brasileira há algum tempo.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 5)

Leis trabalhistas e populismo

ESTUDOS AVANÇADOS - O caráter antioligárquico da revolução de 30 foi, até certo ponto, favorável a um início de proteção do trabalhador em face do capitalismo selvagem, primeiro o trabalhador urbano e, muito mais tarde, o rural. As recentes tendências neoliberais não estariam desestruturando o que se começou a arquitetar a partir dos anos 30? Como explicar que as esquerdas brasileiras, independentes e heterodoxas na década de 80, tiveram de, nos anos 90, voltar às propostas trabalhistas que há muito tempo estigmatizavam como "populistas"? Você tem sido severo para com esse abuso do uso do termo populismo, que lhe parece infiltração udenista oligárquica no pensamento de esquerda, sobretudo nos anos 70. Por que esse termo lhe parece infeliz como julgamento político?

J. S. M. -Acredito que haja um equívoco sério no antigetulismo das esquerdas, e na crítica ao populismo de origem getulista. Venho de uma família operária que foi amplamente protegida, nos limites estreitos dessa proteção, pelos direitos trabalhistas que Getúlio Vargas reconheceu e impôs já no Estado Novo. Para mim essa não é uma questão teórica ou doutrinária, ou não é apenas isso.

Pode-se chamar a isso de populismo, não tenho nada contra a palavra populista. Tenho é contra a idéia de condenar o populismo e adotar práticas populistas, o que me incomoda profundamente. O populismo getulista, não o populismo de Ademar ou Jânio, teve um importante sentido social, como meio de conquista de direitos sociais. Foi seguramente o meio de incorporar ao processo histórico a grande massa operária do país. Muita gente diz que se não fosse o populismo de Getúlio os trabalhadores teriam se tornado socialistas ou anarquistas. Quem diz isso comete o equívoco de extrapolar condensações da historia operária brasileira que destacaram as orientações de esquerda de grupos minoritários do operariado. Um grande defeito dessa historiografia é o de não examinar objetivamente a diversidade da classe operária entre o fim da escravidão e a Revolução de 30. Sobretudo porque a pesquisa de seus historiadores limitou-se aos arquivos de militantes e grupos de esquerda. Quando se examina outros documentos, como os das missões religiosas cujos arquivos estão no exterior, ou se recorre à tradição oral nos bairros operários, então a história que vem para fora é completamente outra. Os socialistas e anarquistas tinham uma extração social bem definida; não raro vinham das profissões artesanais, as mais atingidas pela industrialização. A grande massa operária era indiferente às polarizações da política. E a partir dos anos 20, nos bairros operários de maior concentração de imigrantes italianos, como o Brás, a Moóca, São Caetano, Santo André, Lapa, havia núcleos organizados do Fascio. Além disso, em 1930, a greve de 1917 - o momento mais revolucionário da história operária de São Paulo - estava bem longe. Sem contar que a cidade passara pela dramática experiência da Revolução de 1924, com severos bombardeios nos bairros operários, sem que o operariado tenha feito pouco mais do que saquear fábricas e depósitos de mercadorias.

Não podemos esquecer que a Revolução de 30, apesar de antioligárquica, foi composta com as oligarquias. O grande acordo político que Getúlio Vargas estabeleceu com as oligarquias foi no sentido de modernizar as relações de trabalho na cidade sem mexer nas relações de trabalho no campo, o que fez com que relações arcaicas persistissem durante um tempo larguíssimo. Não cometeria a ingenuidade de dizer que isso ocorreu porque Getúlio foi oportunista; de fato, ele não tinha condições de fazer outra coisa. Nos primeiros meses do Governo Provisório, foram feitas prisões de coronéis políticos do sertão, especialmente no Nordeste. Depois, a Revolução descobriu que não poderia governar o país sem a intermediação desses coronéis sertanejos. Nesse momento inaugura-se uma política de composição que teve seus momentos fortes nos governos de Getúlio Vargas e no governo de Juscelino Kubistchek. E tem um curioso desdobramento no governo de Fernando Henrique Cardoso, que precisou se compor com as oligarquias para desencadear a modernização do Estado, para transformar o Estado num Estado antioligárquico. Algo que numa escala mais modesta Juscelino também tentara.

A Coluna, Prestes se defrontou com esse problema, o de uma população rural que estava alheia, efetivamente excluída de qualquer processo de decisão. O que se fez foi uma composição para viabilizar um Estado iluminista e modernizador. Nesse sentido, o governo atual é a continuação dessa proposta, uma proposta de composição com as oligarquias como forma de viabilizar alguns atos de modernização do Estado. Ou seja, trata-se de continuar fazendo composições para avançar lentamente no processo de modernização do Estado, um Estado efetivamente oligárquico.

As concessões foram obtidas por meio de negociações, de grandes renúncias por parte da massa da população, dos pobres. Atualmente, a CUT está tentando entender esse processo, tentando perceber que mais do que o confronto, numa circunstância como esta, é importante a negociação. Ou seja, a mesma lógica está se estendendo até a classe trabalhadora.

Quando falo da concepção de populismo, costumo dizer o seguinte: no PT, quem usa a concepção de populismo o faz numa perspectiva udenista, ou seja, é a crítica burguesa ao populismo. Mas o populismo representou efetivamente um avanço para a massa trabalhadora, o máximo de avanço possível naquelas circunstâncias. Considerado nessa perspectiva, o populismo getulista não foi um instrumento de manipulação da classe operária contra os interesses da classe operária.

Muitos tem dificuldades para distinguir em Getúlio Vargas várias e diferentes pessoas, dependendo do momento histórico. O que fez dele um estadista foi a competência para personificar plenamente, e corajosamente, esses diferentes momentos, no limite, até a morte. O Dr. Getúlio da Revolução de 30 é um; o Dr. Getúlio do golpe de 1937 é outro; o Dr. Getúlio de 1954, do apelo à revolução e da decisão pelo sacrifício é completamente outro. No entanto, Getúlio Vargas é mesmo essa diversidade, no fundo a diversidade do país, os desencontros de sua história nem sempre lógica. Ele é demonizado por causa do Estado Novo, do Estado repressivo, da tortura - que, evidentemente, atingiu também a classe trabalhadora -, de tudo

aquilo que foi característico da ditadura getulista, e é bom que assinalemos esse momento negativo e trágico da história do país. Mas é importante ter presente que a perspectiva da recusa em reconhecer os aspectos positivos dos governos Vargas não é necessariamente uma perspectiva operária. Ela ainda é a perspectiva de quem perdeu a Revolução de 1932, e a perspectiva que depois resultou na formação da UDN, no golpe de Lacerda contra Getúlio Vargas, levando Getúlio ao suicídio. Quando o Partido dos Trabalhadores faz a crítica e a recusa de Vargas, faz a crítica udenista de Getúlio, a crítica burguesa e imperialista. É significativo que o petismo tenha nascido e florescido na região do ABC uma das mais densas regiões getulistas do país. Muitos trabalhadores chegaram ao PT por meio da herança do populismo getulista.

domingo, 12 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 4)

Teoria da dependência e teoria da globalização

ESTUDOS AVANÇADOS - A teoria da dependência, formulada pela sociologia latino-americana no final dos anos 60, foi, segundo certa perspectiva, um desdobramento das teorias do imperialismo. Como estas, o seu ethos político teria sido o da denúncia da onipotência do mercado nas relações internacionais. Até que ponto a teoria da globalização, vigente nos últimos anos, significaria uma atitude de aceitação, uma atitude de conformismo em relação à mesma realidade que os teóricos da dependência diagnosticavam como um desequilíbrio, uma injustiça, um mal a ser reparado? Em outros termos: não terá havido uma direitização conformista e oportunista no modo de apreciar o fenômeno da dependência?
J. S. M. - Tenho a impressão de que a preocupação com a dependência, que tem vários focos de origem na América Latina, teve um de seus focos mais importantes na Faculdade de Filosofia da USP, no grupo de Florestan Fernandes. Ele mesmo se considerava de certo modo um dos precursores do interesse pelo tema da dependência. Claro que a pessoa que mais contribuiu de forma sistemática na sua formulação, como se sabe, foi Fernando Henrique Cardoso. Mas para entender essa preocupação com a questão da dependência, o modo como ela se desenvolveu na USP, é preciso levar em conta as linhas básicas de compreensão da realidade latino-americana e brasileira, sobretudo por parte desse grupo.

Pode-se dizer que há uma tendência nacionalista e antiimperialista clara e presente no conjunto da obra dos autores da Faculdade de Filosofia da USP nessa época. Não sei se era necessariamente uma preocupação de esquerda, no sentido que a palavra possa ter hoje. Naquele momento ser esquerdista ainda não tinha assumido a dimensão mística e "religiosa" que acabou assumindo durante a ditadura e persiste até hoje. Se, de um lado, era um antiimperialismo próximo das posições dos dois partidos comunistas, embora difuso, de outro lado, era também um nacionalismo que ganhava seu melhor sentido nas posições da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina, das Nações Unidas), especialmente na obra de Celso Furtado, e não nas posições do nacionalismo do Partido Comunista, porque antiimperialista e, portanto, porque pró-soviético. Era nesse âmbito cepalino que se situavam as posições de Fernando Henrique Cardoso, no meu modo de ver. Por outro lado, havia, também, uma postura crítica de esquerda em relação ao Partido Comunista Brasileiro e ao marxismo vulgar, o que aparecerá mais tarde, em 1968, na revista de curta duração Teoria e Prática, editada por um pequeno grupo de jovens professores da Faculdade de Filosofia. No período imediatamente anterior à ditadura, havia no grupo de Florestan Fernandes uma clara preocupação com um projeto nacional de desenvolvimento. Mas, essa preocupação não tinha coloração ideológica. Ela decorria das possibilidades de transformação social que o próprio conhecimento científico abria. Por isso, insisto sempre, o projeto Economia, e sociedade no Brasil (Análise sociológica do subdesenvolvimento) sintetizou essas preocupações de implicação política. Esse foi o primeiro texto em que o grupo da Faculdade de Filosofia disse sociologicamente o que poderia acontecer com a sociedade brasileira se a situação se mantivesse aquela. Tratava-se de um projeto que pretendia articular as pesquisas desenvolvidas pela Cadeira de Sociologia I. Nele, os problemas nacionais são problematizados sociologicamente. Mas para onde estava indo essa sociologia?

Era a proposta de uma sociologia enraizada. Nesse documento fica clara a implícita oposição à idéia de uma sociologia colonizada, de importação, sem diálogo com os problemas nacionais, que acabou se difundindo depois das aposentadorias compulsórias e repressivas. Hoje, a sociologia brasileira, com algumas exceções, é uma sociologia colonizada e desenraizada; portanto, descaracterizada. Poderia ser aplicada aqui, na China, em qualquer outro lugar: o resultado seria exatamente o mesmo. Mas naquela época, por volta de 1962, o grupo de Florestan procurava decifrar as possibilidades e limitações daquilo que já se afigurava como inserção dependente do Brasil no mundo capitalista. Examinava as outras alternativas, mas não descuidava dessa que ia ganhando visibilidade. Justamente por isso, o projeto Economia e Sociedade no Brasil pressupunha uma certa coalisão dos diferentes grupos e classes sociais, um certo ecumenismo no diálogo da sociologia com as diferentes classes sociais, uma democrática proclamação do direito à diferença no interior de um projeto histórico unificador. Dessas preocupações resultou uma doação em dinheiro da Confederação Nacional da Indústria para fundação do Cesit (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho). E o próprio governador Carvalho Pinto apoiou a proposta criando o Cesit por decreto numa audiência em que recebeu o professor Florestan Fernandes. Uma leitura esquerdista e radical da história do grupo da USP certamente a deformaria e dificultaria compreender a riqueza de possibilidades históricas presentes nas idéias e atuações da "escola sociológica de São Paulo" e no momento histórico em que essas coisas estavam acontecendo. Justamente por isso é que considero completamente equivocada a suposição de "direitização" quando se passa da teoria da dependência para a teoria da globalização. A lógica da globalização já estava lá naquelas preocupações de esquerda e claramente presentes nas idéias de Fernando Henrique.

No fundo, parece que a questão era a de saber qual a oportunidade do Brasil se transformar num país moderno, democrático e desenvolvido, com justiça social, no quadro da dependência e da globalização.

Uma boa indicação do que digo é que, como afirmei antes, o projeto Economia e sociedade é, de certo modo, o quadro sociológico mais amplo de referencia do governo de Fernando Henrique Cardoso, um projeto de Florestan Fernandes que Fernando Henrique e os outros assistentes de Florestan ajudaram a conceber e escrever. Os tempos e transformações históricos envolvidos nos processos sociais não podem e não devem ser reduzidos a uma temporalidade única e evolucionista, como acontece na polarização simplificadora direita-esquerda. No processo real, os tempos históricos são vários e desencontrados. Há necessidades sociais e históricas que se situam numa temporalidade determinada que não é a temporalidade da política partidária. São necessidades que só se resolvem acima das facções, dos partidos e das polarizações partidárias e ideológicas. A modernização da sociedade e do Estado brasileiros, considerados no projeto mencionado do grupo de Florestan, é uma necessidade "de esquerda", no sentido de que é uma necessidade histórica que quebra o poder das oligarquias e da dominação patrimonial em favor da sociedade, da emancipação do povo dos vínculos clientelistas e populistas, em favor da participação democrática de todos. É um projeto urgente e em execução.

Ao mesmo tempo, a sociologia como ciência não pode ceder aos voluntarismos. Se o fizesse deixaria de ser ciência. Nesse sentido, como gostava de reconhecer Florestan, ela constitui a autoconsciência científica da sociedade. Por isso, digo eu, ela também se situa numa das temporalidades do processo histórico, que não é a temporalidade dos partidos e dos confrontos eleitorais. Ela se situa no âmbito da consciência social que vislumbra obstáculos históricos e se situa, também, no âmbito da consciência das possibilidades da História, mediação da práxis transformadora que abre caminho entre os obstáculos sociais para que o Homem se emancipe de suas necessidades, de sua miséria. O voluntarismo político pode se equivocar e freqüentemente se equivoca, como vemos nestes nossos dias. Nesse caso, a ideologia pode ser de "esquerda", mas a ação é de "direita", pois acaba viabilizando a realização do projeto político dos que se opõem à emancipação humana a que me referi.

A globalização já estava pressuposta e pressentida no projeto de pesquisa de Karl Marx no século XIX, quando ele diz que a mundialização do mercado será um dos momentos de sua análise. Em diversos momentos, ela está claramente presente na obra marxiana. E não se trata da proposta de uma teoria do que mais tarde os marxistas definiram como imperialismo. Para Marx já estava claro que era impossível explicar sociologiamente o desenvolvimento do capitalismo inglês sem referência à mediação do arrendatário irlandês ou do escravo negro nos Estados Unidos. A concepção metodológica de totalidade, que pressupõe contradição e diversidade, em Marx pressupõe também a mundialidade dos processos históricos investigados. Embora, evidentemente, o singular e diferente tenha sua própria força histórica, sua dinâmica e sua presença na ação e nos movimentos sociais.

Na década de 60, Florestan e seu grupo incluíam em seus estudos a preocupação com os desdobramentos possíveis do processo histórico, do desenvolvimento brasileiro. Isso tinha muito a ver com o reconhecimento da necessidade de que a sociedade brasileira desvendasse a situação social em que se movia e as condições históricas dos diferentes modos de intervenção em seus rumos. Tratava-se de encarar a sociologia como um serviço à sociedade. Falava-se em burguesia nacional. Havia na sociedade uma difusa esperança política de que talvez existisse uma burguesia disposta a fazer e executar uma proposta alternativa ao modo como o Brasil vinha se situando em face do capital internacional, da penetração e dominação do capital estrangeiro. Como contrapartida preocupavam-se os cientistas sociais com o atraso social e econômico como um problema nacional urgente. Tanto a pesquisa que Fernando Henrique fez sobre os empresários industriais quanto a pesquisa nacional sobre os grupos econômicos multibilionários, que Maurício Vinhas de Queiroz coordenou na antiga Universidade do Brasil, ambas mais ou menos na mesma época, mostraram que a burguesia nacional era uma ficção, e, por implicação, uma esperança vã das esquerdas. Nos termos de hoje, a inserção do Brasil na globalização já era evidente. Esse era o dado político.

Fernando Henrique retornou a esse tema mais tarde numa entrevista que deu a Lourenço Dantas Mota, publicada depois pelo Senado Federal, na qual faz uma pequena revisão dessa história. Entre outras coisas, sua pesquisa procurava identificar objetivamente o que era a burguesia nacional no Brasil. Naquele momento, havia dois empresários que com certeza poderiam se comprometer com um projeto alternativo, e mais ninguém. Todos os outros estavam envolvidos em um projeto de inserção no capital internacional.

Desenvolvimento nacional versus desenvolvimento global

Nessa fase, eu estava realizando em São Paulo uma parte da mencionada pesquisa de Maurício Vinhas de Queiroz sobre os grupos econômicos multibilionários. Coube-me entrevistar, juntamente com Antônio Carlos de Godoy, o empresário Luís Dumont Villares, o patriarca do Grupo Villares. Isso foi logo após o golpe de 1964. Uma das perguntas que lhe fizemos foi justamente sobre a burguesia nacional, já que ele era considerado um de seus membros. Ele afirmou claramente que a burguesia nacional era uma idiotice (usou essa palavra). Na perspectiva de um capitalismo autônomo, se quisesse tecnologia para sua empresa, teria que montar um laboratório de pesquisas e de criação tecnológica, com custos altíssimos que não teria condições de assumir sozinho. Dessa forma, preferia ir à Suécia ou à Alemanha, por exemplo, e comprar a tecnologia da Siemens, pagando 1% de seu lucro total com toda assistência, tecnologia e inovação necessárias, sem ter que recorrer a mais ninguém. Villares afirmou, ainda, que, para um empresário capitalista como ele, não seria racional aventurar-se a criar laboratórios e centros autônomos de produção de tecnologia para enfrentar a concorrência internacional.
Amadurecia a constatação de que o imperialismo também sofrerá transformações profundas como dominação econômica e política, aprendera com as resistências nacionais e de classe, desenvolvera estratégias globalizantes, abria espaços de parceria subalterna. Já não era necessariamente um inimigo do desenvolvimento nacional, mas um sócio compulsório desse desenvolvimento. Nessa perspectiva, oferecia aos países subdesenvolvidos a alternativa de tornarem-se sócios-menores do desenvolvimento capitalista. Lembro bem dessa expressão porque era freqüentemente usada por membros do grupo de São Paulo: ia ficando claro que o capitalismo abria um espaço de integração e participação aos países subdesenvolvidos (ou em vias de desenvolvimento, como se começava a dizer) o espaço de sócios-menores do desenvolvimento capitalista globalizado e internacional. Fernando Henrique foi um dos primeiros cientistas sociais a perceber a mudança que estava ocorrendo.

No fundo, a concepção de dependência que se gestava naquele momento não se ligava à categoria de imperialismo. Ela representava outra coisa e outra concepção do relacionamento entre as nações do mundo capitalista. Ela implicava num certo projeto de reinserção lateral na economia capitalista e, sobretudo, num projeto de exploração de nossas vantagens comparativas num mundo globalizado na condição que nos restava, a de economia dependente. A alternativa representada por essa inserção, que a ditadura militar, afinal, acelerou, dava-se no plano histórico. Bloqueadas as outras possibilidades, a do socialismo ou a do capitalismo autônomo, era essa a alternativa historicamente mais plausível. O que, afinal, se confirmou na própria história dos países de socialismo de Estado.

No caso brasileiro, discutia-se a experiência do governo Campos Sales, na virada do século. Fernando Henrique chegou até mesmo a escrever um trabalho sobre o assunto. O governo Campos Sales, entrando na política liberal exportada pelo colonialismo da época, acabou levando o país à falência: teve que empenhar em favor dos credores as rendas da alfândega do Rio de Janeiro. Ao simplesmente copiar a política econômica liberal dos países dominantes, o país produziu aqui efeitos econômicos contrários ao que ocorria nas economias metropolitanas. O caso do governo Campos Sales sugeria a importância de uma outra modalidade de orientação econômica a um país como o Brasil, por se tratar, justamente, de uma economia dependente.

No meu modo de ver, com a passagem da teoria da dependência para a teoria da globalização não houve uma ida para a direita, porque aquela não era, necessariamente, uma perspectiva de esquerda, e nem a atual perspectiva é, necessariamente, uma perspectiva de direita. O que há é a tentativa de ajustar o desenvolvimento do país a possibilidades reguladas fora dele, no plano internacional, pelos grandes conglomerados econômicos, pelos governos estrangeiros dos países ricos. Tenho muita resistência à idéia de colocar os rótulos direita/esquerda na questão.

Naquela época, a crítica à situação de dependência era uma crítica de esquerda, mas, ao mesmo tempo, era uma proposta de adesão estratégica. Um país como o Brasil teria condições de fazer exigências, de cobrar tratamentos preferenciais, agindo simultaneamente no plano da economia e da política internacionais. Era a esquerda que falava em dependência imaginando que estava falando de imperialismo, e na verdade não estava falando de imperialismo mas do ajustamento da economia nacional na economia globalizada, que era uma coisa diferente.

Hoje, na minha opinião, não se trata exatamente de uma questão de direita. Trata-se de uma questão política que, de qualquer modo, se inspira em um debate que vem da esquerda. Mas afirmar isso seria reduzir excessivamente o que está acontecendo. Aliás, Fernando Henrique Cardoso foi um dos primeiros a falar sobre globalização. Ele estava no Chile quando escreveu um trabalho sobre o assunto, e sempre teve uma percepção mais rica do que Florestan Fernandes a respeito dessas questões, talvez devido à sua inserção e mobilidade internacionais.

Essas questões estavam, portanto, presentes no grupo de São Paulo. Não eram pura e simplesmente idéias. Não se tratava de um debate de produção de doutrinas, mas de investigar a realidade brasileira, o que ela oferecia ou não, quais suas possibilidades históricas. A pergunta que Fernando Henrique Cardoso fez no fim de sua tese de livre-docência, "subcapitalismo ou socialismo?", propôs claramente as alternativas que estavam diante de nossos olhos. As pesquisas que o grupo estava desenvolvendo mostravam que estávamos indo na direção do subcapitalismo, isto é, do capitalismo dependente. O golpe de Estado, aliás, selou politicamente essa alternativa e esse destino. Depois de tanto tempo e tantas transformações, seria um completo absurdo político e econômico tentar rever e anular a História feita e consumada, como muitos ingenuamente pretendem. Antes de tudo é preciso retomar a preocupação com a praxis, voltar ao sentido das propostas teóricas e interpretativas que a "escola sociológica de São Paulo" havia feito, tendo em conta o novo contexto histórico, o fechamento de algumas possibilidades e a abertura de outras, mas sobretudo retornar ao paradigma do reconhecimento das necessidades sociais e históricas como fundamento de uma sociologia enraizada.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 3)

Trabalhadores no campo

Fiz minha pesquisa sozinho. Possuía uma certa experiência de trabalho de campo, que desenvolvi quando estive na Nestlé, onde trabalhava no setor de pesquisa de mercado. Não era exatamente a mesma coisa, mas alguns procedimentos são muito parecidos. Fiz uma pesquisa exploratória e comparativa, em 1965, em três regiões do Estado de São Paulo: Alta Sorocabana, Baixa Mogiana e Alto Paraíba.
Foi no campo que fiz algumas observações que depois marcariam muito meu trabalho: o fato de que ser caipira, e vivenciar a cultura caipira, não estava em conflito com a modernização tecnológica e o desenvolvimento capitalista, suposição comum nos estudos sobre o campesinato latinoamericano. Por meio desse estudo comparativo de áreas com diferentes níveis de modernização, ficou visível, por exemplo, que os caipiras do Alto Paraíba - autenticamente caipiras no sentido de Antonio Candido, de "membros e participantes de uma cultura caipira" - não eram avessos à modernização nem estavam em conflito com ela, nem impediam o desenvolvimento capitalista. Poderia haver modernização e eles continuarem caipiras, continuarem vinculados à tradição do bairro rural, da família camponesa de tipo tradicional, da cultura rústica. Uma coisa não caminhava necessariamente no sentido de destruir, de imediato, a outra. É claro que haveria uma interação que, reciprocamente, teria conseqüências, mas não da forma como se dizia naquela época.

Minhas preocupações com este tema não foram, evidentemente, tiradas do "bolso do colete". Tudo tinha muita relação com as próprias características e orientações intelectuais do grupo de Florestan Fernandes naquela época. Havia o projeto Economia e sociedade, de 1962, que era referência dos projetos desenvolvidos na cadeira de Sociologia I. O centro das preocupações desse projeto era a questão da resistência às mudanças, um tema muito forte em sua sociologia quando tratava das dificuldades para transformar o país em um país democrático, moderno. Essas questões vinham também das preocupações de Fernando de Azevedo, da velha tradição da Faculdade de Filosofia.

Em 1968, Florestan publicou Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, para mim um de seus trabalhos mais importantes. De certo modo, é a contribuição da "escola sociológica de São Paulo" ao debate sobre feudalismo e capitalismo na América Latina, que ganhara uma exagerada importância em certos meios intelectuais. As úteis provocações de André Gunder Frank, negando a existência de um feudalismo latinoamericano e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma tese de certo modo simplista e mecanicista sobre o desenvolvimento capitalista na região, sugeriam a conveniência de uma ampla retomada e revisão de idéias e interpretações, revisão que o grupo de São Paulo já estava fazendo, muito antes de que Frank chegasse à cena. Na verdade, desde os anos 50, a sociologia brasileira estava debatendo o problema do atraso em termos de bloqueios e obstáculos ao desenvolvimento econômico e social. O grupo da USP incorporara o problema em vários de seus projetos - no estudo da formação do empresariado industrial, da classe operária, do Estado. Numa perspectiva, portanto, muito mais rica do que a adotada por Gunder Frank, que a partir de um artigo publicado na Revista Brasiliense, polemizava com os marxistas vulgares a respeito do padrão estrutural do desenvolvimento latinoamericano. Frank chegava tardiamente a uma discussão que já estava produzindo trabalhos de grande consistência na Faculdade de Filosofia, em grande parte mediante a incorporação crítica do que se poderia chamar de uma sociologia marxista a uma visão sociológica abrangente e, de certo modo, ecumênica dos impasses históricos. A diferença de qualidade do trabalho do grupo de São Paulo estava sobretudo na grande atenção dada à questão do método e nas contribuições originais que daí surgiram para o uso da dialética na sociologia. Em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Florestan mostra que o atraso e as relações atrasadas constituem uma necessidade do capital e do desenvolvimento capitalista.

Já em 1965 eu desenvolvera minha pesquisa comparativa sobre a modernização e os obstáculos à modernização no campo, tomando como referência três regiões paulistas em que as condições da modernização agrária eram substancialmente diferentes entre si. A surpresa da pesquisa foi a constatação de que na região mais caracteristicamente tradicionalista e caipira, o Alto Paraíba, o tradicionalismo era justamente um ingrediente essencial e uma condição do padrão altamente moderno, capitalista e eficiente da agropecuária regional, especialmente no Médio Paraíba, que ganhava corpo numa moderníssima cooperativa regional de leite e seus derivados. O tradicionalismo era, naquelas condições, e certamente não seria em outras, um dos meios da acumulação capitalista. Não havia, portanto, uma incompatibilidade necessária entre capitalismo e tradicionalismo. Entreguei ao professor Florestan dois pequenos estudos preliminares com os resultados da pesquisa de 1965, um deles um relatório para a Fapesp. O professor Florestan achou que mereciam publicação e enviou-os para aRevista do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, e para a revista América Latina, do Centro Latinoamericano de Pesquisas em Ciências Sociais, do Rio de Janeiro, nas quais foram publicados nos primeiros meses de 1969. Por ter usado numa passagem de um deles a palavra "função" para me referir à relação do tradicionalismo com a acumulação, logo diferentes autores começaram a falar em "funcionalidade da agricultura atrasada", uma definição imprópria e imprecisa. Mas, essa constatação foi a base de referência da chamada crítica da razão dualista, que, trabalhada por outros autores, fez famas e prestígios. Foi, também, base de estudos sobre o lugar da pequena produção agrícola no desenvolvimento capitalista. De fato, a idéia reaparece quase que literalmente, embora curiosamente sem citação de fonte, em trabalhos que depois se tornaram muito conhecidos e citados, publicados somente três anos mais tarde, em 1972 e depois.

No começo da década de 70, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco estavam fazendo pesquisas e estudos para, no fundo, determinar o padrão do desenvolvimento histórico e capitalista da sociedade brasileira. Tratava-se de descobrir e trabalhar as nossas singularidades nas características universais do capitalismo e, ao mesmo tempo, investigar suas tendências e possibilidades. Creio que quase tudo que fizeram nesse período está profundamente marcado por essas preocupações. Minha primeira pesquisa, e outras que fiz depois, partia dessas orientações e das contribuições teóricas c interpretativas consistentes que vinham desses trabalhos e lhes dava continuidade. Km particular, enfatizo a importância dessa marca da "escola sociológica de São Paulo" que foi a de tomar como referência metodológica da pesquisa científica não necessariamente o que está no centro do processo histórico, mas aquilo que está num plano secundário ou marginal, uma mediação. Mesmo quando se tratou de estudar a burguesia (e o empresariado), Fernando Henrique não foi estudá-la em seu apogeu e em sua dominância, mas começou por estudá-la em sua origem, nas contradições do escravismo, num momento de impasses históricos e de incertezas, um momento de gênese e de definições estruturais. O meu trabalho procurava seguir esse padrão. Fui estudar o pólo atrasado do desenvolvimento capitalista, tendo como referência, porém, os resultados sociais mais elaborados desse desenvolvimento. Não se tratava de retomar polarizações e dualismos, como ocorrera com o estudo da Jacques Lambert sobre Os Dois Brasis, nos anos 50. Tratava-se de reconhecer no atrasado, no anômalo, no marginal a mediação que oferece a compreensão mais rica do processo histórico e também indica o lugar histórico de bloqueios e resistências ao desenvolvimento social.

Crítica ao dualismo

Tratava-se, portanto, da crítica do dualismo e ela, no grupo de Florestan Fernandes, foi esboçada e ganhou corpo em trabalhos dele e dos pesquisadores a sua volta. Foi a primeira recusa de uma tipificação que ganhava sua formulação mais elaborada em polarizações de tipo weberiano, um Weber empobrecido e simplificado. No mais das vezes, o dualismo dos anos 50 e 60 combinava a tipologia weberiana com as formulações estruturais de Parsons e assumia a forma de um modelo sociológico weberianizado nas interpretações de Gino Germani. Esse questionamento das grandes tipologias do desenvolvimento estava sendo feito também por Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.

Quando eu era aluno do curso de graduação em Ciências Sociais, Fernando Henrique propusera que lêssemos Lukács. O livro História e Consciência de Classe acabara de ser publicado em francês, e nós lemos essa edição. Lukács, apesar de marxista, sofrerá algumas influências de Weber na concepção de consciência possível, de consciência adequada, baseada na categoria de possibilidade objetiva de Max Weber.

Ainda quando eu era aluno do curso de graduação, os cursos ministrados por Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Mencarini Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco, para ficar só no grupo da Sociologia I, expressavam o caloroso debate intelectual que parecia ocorrer no chamado seminário d'O Capital, que organizaram e de que faziam parte. A leitura desse livro de Lukács nos punha diante de um marxismo aberto a interpretações sociológicas de extração diversa, uma tentativa inteligente, embora discutível, de lidar com os problemas da consciência de classe. Menos pela orientação interpretativa de Lukács e mais pela centralidade da problemática da consciência no processo histórico, algo oposto aos determinismos estruturais do marxismo vulgar. De algum modo, as complexidades do método dialético compareciam a um debate que era de fundo metodológico.

A partir do início dos anos 60, e da politização mais intensa do debate acadêmico, com a participação de uma intelectualidade universitária de esquerda, à qual de algum modo pertenciam os professores mencionados, houve necessidade de maior precisão e rigor quanto à relação entre sociologia e marxismo. Nos anos 50, Florestan Fernandes publicara trabalhos fundamentais sobre os métodos de explicação na sociologia. Reunidos emFundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, esses trabalhos já sugeriam a especificidade das orientações teóricas e dos procedimentos interpretativos de cada um dos grandes métodos de explicação: o funcionalismo de Durkheim, a compreensão de Weber e a dialética de Marx.

O fato de que Florestan pusesse lado a lado os três métodos era interpretado, não raro, em meados dos anos 60, como sinal de uma equivocada equivalência dos métodos e da possibilidade de sua eclética mixagem. Alguns, menos precisos, viam aí um hibridismo comprometedor, um ecletismo redutor das possibilidades e alcance dos diferentes métodos. Florestan na verdade sugeria que para cada modalidade de tema e problema há um método apropriado. Alguns podem ser tratados na perspectiva dialética; outros não. E assim por diante. Mas, os métodos não são intercambiáveis ao gosto de quem os utiliza. A definição de um problema de investigação sociológica já pressupõe o método de sua explicação. Em outros termos, a opção por um método já supõe uma visão de mundo, uma modalidade de consciência social.

A preocupação com a "pureza" de um método e com os limites teóricos à incorporação de interpretações de orientação a ele estranhas tinha sentido no ambiente acadêmico de esquerda dos anos 60, marcado por preocupações fundas com as possibilidades históricas do capitalismo subdesenvolvido; embora não tivesse sentido no clima do desenvolvimentismo híbrido dos anos 50, no ambiente político das composições de convivência pacífica entre as oligarquias e os empresários industriais próprias do juscelinismo. A necessidade de pensar sociologicamente um momento histórico aberto sobre possibilidades polares e antagônicas (Fernando Henrique Cardoso termina sua tese de livre-docência sobre Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômicoperguntando: subcapitalismo ou socialismo?) não permitia hibridismos conceituais, muito comuns na época. Florestan Fernandes não era, obviamente, um eclético. Basta ver o tratamento que dá a diferentes temas em diferentes momentos de sua obra: os procedimentos interpretativos adotados em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento são substancialmente diferentes dos que foram adotados em A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá.

É o que explica que os assistentes de Florestan Fernandes tenham organizado seu seminário sobre O Capital semconvidá-lo e tenham feito uma leitura metodológica do livro numa linha bem diversa da que ele percorrera emFundamentos Empíricos. Eles, de certo modo, propunham que se escapasse do Marx interpretado e codificado, fortemente capturado por dogmatismos políticos ou, no caso da sociologia, um Marx de certo modo reduzido a um diálogo forçado com as sociologias, como autor de um sistema sociológico a mais. Sua proposta era, no meu modo de ver, a de uma volta ao Marx marxiano e, portanto, o Marx do diálogo crítico e criador com os autores de sua época. Um Marx criticamente aberto à tarefa sociológica de situar historicamente diferentes interpretações para poder dialogar com elas e superá-las.

Aquele foi um momento de purificação de idéias, pois havia muita imprecisão interpretativa na análise da sociedade brasileira, uma sociedade que claramente se encontrava numa encruzilhada histórica. Para mim, ter esse debate ao meu alcance em aulas, artigos e livros foi fundamental. Eu estava começando a trabalhar com um mundo que os equivocados diziam ser feudal, o arcaico a ser inevitavelmente superado pelo capitalismo puro da teoria, que muitos supunham ser o capitalismo das relações sociais reais. O que havia, mesmo, era uma realidade brasileira rica de indagações, contradições e exigências de interpretação. O debate na USP criava o quadro de referência para discutir essas questões. Meu trabalho foi, portanto, não apenas um trabalho de pesquisa, mas uma experiência de pesquisa fundada em um debate teórico. Quando estava no campo, por exemplo, pensava teoricamente aquilo que observava, o que foi muito importante para mim.

sábado, 4 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 2)

Vida universitária

No tempo do curso de graduação na Universidade, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Fui aluno de curso noturno. Mesmo assim, foi uma experiência interessante, um deslumbramento, porque eu vinha da periferia, da fábrica, de uma família pobre, da escola pública que estava começando a entrar em crise.

Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni haviam estado na escola em que eu estudava na época da Campanha da Escola Pública. Foi a época do grande debate sobre o assunto. Desse modo, quando entrei na Universidade, em 1961, foi uma descoberta fascinante a de reencontrá-los na sala de aula. Fui aluno de Fernando Henrique logo no primeiro ano e, depois, de Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Paula Beiguelman, Marialice Mencarini Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Gioconda Mussolini. Estudei e tive contato com o pessoal da origem, os herdeiros do primeiro momento da Faculdade de Filosofia da USP.
Entrei na Universidade muito motivado pela idéia do compromisso social que ela propunha e realizava. Havia um projeto para o Brasil, que vinha desde sua fundação. No caso da sociologia, esse projeto ganhou fisionomia própria e sintética no projeto de pesquisa de Florestan Fernandes que teve o título de Economia e sociedade no Brasil (Analise sociológica do subdesenvolvimento), escrito com a colaboração de seus vários assistentes. No meu modo de ver, Fernando Henrique Cardoso deu dimensionamento político a idéias fundamentais desse projeto em seu governo. Já havia um projeto social na cadeira de Sociologia I: a preocupação com a escola pública gratuita, a preocupação com a modernização das relações sociais no Brasil, a modernização do empresariado, do Estado, da classe operária, a extensão dos direitos sociais a todas as pessoas. Dessa forma, para mim foi um fascínio descobrir que o mundo do qual eu vinha era também objeto de inquietação, de preocupação e de propostas por parte da Universidade, em geral tida como desvinculada, desenraizada e desinteressada em relação a essa realidade.

ESTUDOS AVANÇADOS -Nesse período da universidade você fez algum tipo de trabalho prático, algum trabalho de campo que o despertou para os estudos que viria a fazer depois, particularmente ligados à sociologia rural?

J. S. M. - Como era aluno de curso noturno, a chance de participar em qualquer projeto na Faculdade era muito pequena, praticamente nenhuma, pois eu tinha que trabalhar para sobreviver e estudar. Não dispunha, portanto, de tempo e liberdade para me envolver em algum projeto de pesquisa da escola. Quando estava terminando o 2° ano do curso, Fernando Henrique Cardoso me procurou. Era a época em que ele estava ampliando as equipes do antigo Cesit (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho), que Carvalho Pinto havia criado na cadeira de Florestan Fernandes, Sociologia I. Naquele momento, era o único núcleo que oferecia oportunidades de trabalho em projetos de pesquisa na área de Ciências Sociais.

Fernando Henrique me procurou, sabia que eu continuava morando no subúrbio, trabalhando o dia inteiro, indo e voltando, e perguntou se não me interessaria por uma bolsa de estudos para trabalhar no projeto de pesquisa de Luiz Pereira, que estava vindo de Araraquara para São Paulo para desenvolver uma pesquisa sobre qualificação da mão-de-obra operária. Dessa pesquisa resultaria o livro Trabalho e desenvolvimento no Brasil.

Luiz Pereira precisava de um auxiliar de pesquisa, uma pessoa que fizesse as entrevistas, organizasse o trabalho para ele. Aceitei, e para mim foi um ônus. Naquela época, trabalhava na Nestle, no setor de pesquisa de mercado, e ganhava um salário bastante razoável. Não era um grande salário, mas me mantinha. Eu era "arrimo de família" e a bolsa representava um quinto do que eu ganhava. Era uma verba conseguida por meio de bolsas que a Cadeira de Sociologia I e o Cesit, do qual Fernando Henrique era o diretor, recebiam de instituições diversas, inclusive internacionais.

Pesquisa e participação

Aceitei porque era a única forma de me dedicar integralmente à vida escolar e ao trabalho intelectual. Eu queria essa oportunidade, e deixei a Nestlé para ir trabalhar com Luiz Pereira. Curiosamente, a pesquisa era sobre operários, não tinha nenhuma relação com o mundo rural. A chamada realidade rural não era objeto de interesse específico na cadeira de Florestan Fernandes. Havia duas cadeiras de sociologia e entre elas uma espécie de divisão de trabalho, da seguinte forma: operários, indústria, empresários e Estado ficavam na cadeira de Sociologia I; questões rurais ficavam na Sociologia II, onde estava Maria Isaura Pereira de Queiroz, embora Azis Simão estudasse a história do movimento operário.

Não fui aluno de Maria Isaura, pois ela não estava no Brasil na época em que, na seqüência do curso, eu poderia ter assistido a suas aulas. Em todo caso, foi fácil me engajar no projeto de Luiz Pereira sobre qualificação de mão-de-obra. Fui operário desde criança, comecei a trabalhar com 11 anos de idade. Conhecia os bairros operários de São Paulo, me movia com extrema facilidade tanto dentro das fábricas quanto na conversação com a população operária. Essa foi uma pesquisa enorme que acabei fazendo sozinho; o próprio Luiz Pereira pouco se envolveu na execução do projeto. No começo, havia outros participantes na pesquisa, mas eles acabaram se marginalizando por desinteresse pelo tema e, sobretudo, pela pouca disposição de ir todas as noites aos bairros operários da periferia fazer as entrevistas. Mas, recebiam o dinheiro da bolsa todos os meses. Portanto, trabalhei por mim e pelos demais. De certo modo, Luiz Pereira acabou reconhecendo a minha dedicação numa nota de rodapé de seu livro. Apesar das facilidades que tinha para lidar com o assunto, esse trabalho foi de execução difícil. Quase sempre era necessário ir a bairros distantes e ainda andar um bocado depois do ponto de ônibus. Lembro-me de que, num dos casos, cheguei no começo da noite na casa do operário que ia entrevistar. A entrevista terminou mais de dez horas da noite. Aí ele me disse que, naquele horário só havia ônibus num ponto do outro lado do imenso Cemitério da Vila Formosa, sem muros e sem iluminação, que era necessário atravessar por dentro, pois era o único caminho. Aquela noite foi um sufoco para chegar ao Parque Dom Pedro e, depois, a São Caetano onde eu ainda morava.
Enfim, os outros não se adaptaram e acabei fazendo sozinho a pesquisa para o Luiz Pereira. O próprio Luiz não tinha muita mobilidade; havia sido professor primário mas não sabia se movimentar nessa área da indústria. Fiz os contatos nas fábricas, os levantamentos dos processos de trabalho, as listagens de operários, o que foi ótimo para mim. O que os outros achavam ruim foi para mim um benefício, porque revivi as coisas que conhecia bem e, ao mesmo tempo, na perspectiva do trabalho sociológico. Além disso, diariamente me encontrava com o Luiz Pereira, antes das aulas da tarde, para informar-lhe sobre o trabalho da véspera. Era uma boa oportunidade de ouvir comentários e aprender com ele um pouco do muito que sabia, sobretudo num momento em que ele estava se submetendo a uma ampla revisão de formação. Almoçávamos juntos num restaurante italiano que havia num casarão antigo na rua da Consolação, "Tarantella" se não me engano. Luiz era muito pão-duro. Pedíamos um prato para dois e dividíamos a despesa, o que consumia boa parte de minha modesta bolsa.

Dediquei-me basicamente a esse projeto. Quando o trabalho de Luiz Pereira terminou, houve uma seleção das pessoas que haviam participado das várias equipes de pesquisa do projeto de Fernando Henrique, do qual o de Luiz Pereira fazia parte. Alguns ficaram, outros não. Fui um dos escolhidos para ficar e precisei apresentar um projeto para fazer mestrado, que, hoje, equivale à especialização. Apresentei o projeto e escolhi Octavio Ianni como orientador.

Meu projeto era sobre modernização no campo e, obviamente, Ianni era a pessoa que estava mais próxima disso. Mas a escolha desse tema foi um pouco problemática no grupo. Em 1964, Fernando Henrique havia saído do Brasil, pois estava sendo procurado pela polícia política. Depois dele, Luiz Pereira assumiu a direção do Cesit, seguido por Leôncio Martins Rodrigues. Este último ficou bastante incomodado com algumas coisas que encontrou, porque queria um Cesit de sociologia industrial e do trabalho, como era, aliás, o projeto original. Ora, eu havia sido contratado pelo Cesit e meu projeto não tinha nenhuma relação com trabalho urbano. Leôncio criou um problema, falou com Florestan Fernandes. Florestan me chamou em sua casa; enquanto fazia a barba, às 7h da manhã, me disse: "Você tem de decidir o que quer da sua vida, se quer estudar operário ou trabalhador rural".

Respondi ao professor Florestan: "Sempre quis estudar trabalhador rural. Fui estudar operário porque foi a oportunidade que vocês me ofereceram, mas nunca escondi que estava interessado em fazer pesquisas sobre populações camponesas". No fim, nos acertamos. Acabei sendo transferido para a cadeira de Sociologia I, um pouco antes da aposentadoria compulsória de Florestan Fernandes, e continuei meu trabalho. Mas tive várias dificuldades por causa dessa opção, que não estava na opção central da Sociologia I. Fui contra a maré do grupo e parece que estou nela até hoje.