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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Terceirização, baixa remumeração e desemprego.

ESTUDOS AVANÇADOS - Entendo que essa seria uma teoria imanente do capitalismo na fronteira, nas regiões periféricas?
J. S. M. - Não só na fronteira, mas em todas as regiões em que ele tenha que apelar em proporção muito grande à mão-de-obra, em que não possa tecnificar o processo produtivo. Nessas áreas, então, a tendência seria justamente encolher a proporção da participação do trabalho na composição orgânica do capital, de maneira a dar falsamente a dimensão de uma composição orgânica alta e não de uma composição orgânica baixa. Ou seja, os setores atrasados da economia podem estar na fronteira, mas podem estar também na indústria e na cidade. É o que está acontecendo com a terceirização, por exemplo, que tende a funcionar como se os trabalhadores fossem capitais de alta composição orgânica quando, de fato, são capitais de baixa composição. É nesse sentido que o trabalho passa a ter sua remuneração crescentemente reduzida.

ESTUDOS AVANÇADOS - A variante dessa tendência, nos países desenvolvidos, seria o aumento do desemprego?
J. S. M. - O aumento da terceirização, já que o desemprego é um de seus componentes estratégicos. O trabalhador é despedido - e isto está acontecendo maciçamente no mundo inteiro -, e para se reempregar o faz como se fosse empregado de si mesmo, passando a vender sua força de trabalho não por aquilo que necessita para sobreviver, mas concorrendo com os meios de produção. Em outras palavras, ele não concorre com os outros trabalhadores mas com os meios de produção.
O desemprego é apenas um dos resultados desse processo, ou seja, cria-se maciçamente desemprego, substituindo o trabalhador por tecnologia, e a mão-de-obra ainda necessária para fazer funcionar a tecnologia tem de concorrer com a própria tecnologia. Recentemente, acompanhei uma reportagem na televisão na qual se afirmava estar havendo uma redução brutal de salários, inclusive de pessoal técnico altamente qualificado. Já há engenheiros se proletarizando, sendo tercerizados, indo às fábricas como se fossem empresários oferecendo uma mercadoria. Só que essa mercadoria é constituída pelos próprios serviços que podem executar e não mais sua força de trabalho, embora esta força esteja embutida na mercadoria que oferecem.
ESTUDOS AVANÇADOS - Nessa atual situação, como é que você vê as investidas contra a legislação trabalhista no meio rural?
J.S. M. - Ela não está acontecendo apenas no meio rural, mas também na cidade. Os empresários estão fazendo discursos de desregulamentação da legislação do trabalho, dos direitos sociais, dos direitos trabalhistas adquiridos, porque assim criam o trabalho puro. Ele se torna estritamente aquilo que eles necessitam em termos de força de trabalho, sem qualquer responsabilidade social da empresa.
É um argumento canalha, porque a idéia em relação aos trabalhadores é basicamente a seguinte: abram mão de seus direitos e concorram com a máquina. No meio rural, não se trata de uma volta ao passado. Não se quer voltar, por exemplo, ao tempo do colonato, em que não havia regulamentação da força de trabalho mas havia uma alta responsabilidade social dos fazendeiros porque eles eram os protetores daqueles trabalhadores, ofereciam terra, faziam favores e os ajudavam, mesmo com toda a violência existente nessa relação.
Agora é diferente. Agora os fazendeiros querem desregulamentar mas não querem, por exemplo, oferecer terra para as pessoas trabalharem gratuitamente, como compensação por essa desregulamentação. Eles não estão falando numa reforma agrária compensatória, realizada inteiramente nas mesmas fazendas, para absorver esta mão-de-obra. Aliás, essa proposta seria irrealista, porque no meio rural todo o trabalho já está fragmentado, não se trata mais do mesmo processo de trabalho de antigamente, em que o trabalhador tinha trabalho o ano inteiro. Agora se tem trabalho em épocas específicas, no corte da cana, na colheita do café.
O que se quer é desregulamentar aquilo que é puramente setorial, ou seja, aquilo em que é preciso que haja direitos trabalhistas. Quer-se, efetivamente, promover um retrocesso histórico e não a criação de formas mais humanizadas de relacionamento quanto ao que está acontecendo atualmente, não só no campo mas também na indústria, que está fazendo o discurso da desregulamentação. Aliás, esse discurso está sendo feito no mundo inteiro, em todas as áreas atingidas pela globalização.
ESTUDOS AVANÇADOS - Vamos acabar descobrindo que a escravidão é o horizonte do capitalismo...
J. S. M. -É o que já se tem na índia. Os pais vendem os filhos e se vendem, porque assim o patrão é obrigado pelo menos a sustentá-los. E isto é algo que não estava nas cogitações de ninguém quando discutíamos teoricamente o capitalismo, nem passava pelas nossas cabeças que isso iria acontecer. E não se trata do arcaico renascendo. É uma escravidão nova, é algo absolutamente novo.

domingo, 6 de novembro de 2011

Medos e rupturas, memória do subúrbio!

Esses episódios, que aparentemente não se conectam entre si, vão descrevendo um cenário de tensão, de medo, de descontinuidade, de rupturas e de desafio, que é o cenário do subúrbio. É na periferia que se consegue observar melhor esse processo, o que reforça exatamente o contrário do que Marx disse, de que era preciso estar em Londres para observar o que era o capitalismo no mundo. Eu diria: é preciso estar na periferia para observar efetivamente o que ele é. Esta, aliás, é uma sugestão do próprio Marx em um trabalho que pouca gente lê, seu estudo sobre a Irlanda. Vê-se melhor a Inglaterra estudando a Irlanda do que estudando Londres, idéia que desfaz um pouco o que Marx disse em O Capital.
A idéia, no caso de Subúrbio, foi a de recuperar como referência metodológica a perspectiva de quem está à margem dos cenários dominantes e dos processos dominantes. A industrialização no cenário rural, que foi o que ocorreu na atual região do ABC, trazia para esse mundo bucólico os ritmos próprios da fábrica e, portanto, um dos ingredientes básicos da vida cotidiana. E aí a vida cotidiana revela melhor o que ela é, no contraste com os componentes da cena: a vivência do medo, do que não tem sentido aparente.
Todos os anos vou a Paranapiacaba com meus alunos. Vamos de trem de subúrbio e tudo o mais, com direito a muita chuva e neblina, como é próprio daquela região. Paranapiacaba foi o primeiro posto avançado da sociedade moderna no planalto paulista, momento e parte da ferrovia, acampamento de operários. Foi o primeiro lugar de estabelecimento do que se poderia chamar de vida cotidiana em São Paulo. Hoje está praticamente em ruínas. Paranapiacaba foi concebida como uma vila operária, segundo o modelo do panóptico de Benthan, estudado por Foucault, de modo que os engenheiros pudessem, a qualquer hora do dia, inspecionar a vida de seus operários, tanto no trabalho quanto em casa. Quando se vai à casa em que morava o engenheiro-chefe e onde trabalhavam os engenheiros, de cada janela pode-se ver qualquer lugar de Paranapiacaba, incluindo até o pátio de manobras.
Os engenheiros podiam ver tanto a frente quanto o fundo das casas, tanto que a memória dos velhos operários, hoje aposentados, que ainda vivem em Paranapiacaba, é a memória de quando eles eram crianças, vigiados pelos engenheiros. Eles sabiam que estavam sendo vigiados quando à noite o pai chegava em casa e dizia que havia sido advertido porque as crianças tinham feito determinada malvadeza na rua, ou brigado, ou feito algo que não deviam.
Paranapiacaba é um lugar importante para compreender o surgimento da vida cotidiana no planalto paulista, no século XIX. A vila e a ferrovia são as referências fundamentais para compreender a difusão desse novo modo de viver e de pensar na vida dos paulistanos, um novo ritmo de vida, linear. Podemos examinar imensas coleções de documentos sobre o que presumimos ser os sinais do cotidiano na virada do século. Nenhum será mais eloqüente e mais documentativo do que a vila de Paranapiacaba. Ali se vê imediatamente o que foi a chegada da vida cotidiana em São Paulo. É lá que chegou o futebol como instrumento de manipulação, pois foi o primeiro lugar em que apareceu um campo de futebol. A idéia é usar o subúrbio como uma espécie de estação meteorológica do processo de modernização, para tentar observá-lo e vê-lo com mais riqueza. Mas e a memória? O que a memória tem a ver com isso?
A memória é o documento histórico dos que têm medo. É assim que aparece nesta pesquisa. A memória é exatamente a ausência daquilo que minha mãe tinha dificuldade em mencionar: que houve repressão, que as pessoas foram apanhadas dentro de casa numa noite de terror e desapareceram. Há vários desaparecidos dos anos 30 que foram apanhados pela polícia política, pessoas que não se chamavam "Olga" e sofreram uma repressão muito mais brutal do que Olga; os que foram deportados e fuzilados na Espanha, os operários do ABC que passaram por essa experiência, o que não está nos livros da esquerda, não está nos documentos, não está em lugar algum. Está na memória do povo.
A memória é o arquivo histórico do povo, dos pobres, e é assim que ela pode e deve ser tratada. O complicado é que a memória não é simplesmente a lembrança. A memória tem de ser interrogada. Ela tem de ser desafiada e descoberta, pois está escondida lá no fundo da vida dessas pessoas. É um pouco essa a proposta do trabalho que venho fazendo.