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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 15)

Igreja e questão agrária

No caso específico da questão agrária, até os anos 50 a Igreja Católica tinha uma linha bastante clara: nunca havia falado em reforma agrária, nem tinha preocupações a esse respeito. É com o bispo dom Inocêncio, de Campanha, em 1950 -exatamente o mesmo ano em que o Partido Comunista está se dividindo por causa da questão agrária - que começam a aparecer dificuldades a esse respeito, quando ele faz um primeiro pronunciamento episcopal a favor de uma reforma agrária.

Dom Inocêncio não era a favor da reforma agrária na perspectiva que a Igreja tem hoje. Mas era evidente que havia um enorme problema social relacionado ao problema da terra, e também o temor de uma convulsão no campo que retirasse da Igreja suas bases religiosas, o que está dito explicitamente no documento de dom Inocêncio, um documento pioneiro em que ele anuncia uma tentativa de conversação entre fazendeiros e trabalhadores daquela região. Ele era bispo em Minas Gerais, e os grandes fazendeiros participaram de uma assembléia realizada em sua diocese para discutir o problema da reforma agrária. Nessa altura, começa a ficar evidente que os bispos estão tomando consciência de que a questão agrária iria eclodir. No Brasil, a primeira consciência se deu com o que se chamava na época de "questão do êxodo rural".

O que significava o êxodo rural? O trabalhador saía da sua vidinha de família no campo, porque não tinha mais alternativas. Ia para a cidade viver nas favelas, como relatou dom Inocêncio. Depois de um primeiro contato, os bispos começaram a perceber que esta situação envolvia algo mais do que um simples comprometimento das bases da Igreja Católica. Envolvia, também, um processo de desmoralização das pessoas, de desagregação das famílias, de comprometimento grave da dignidade humana. Surgiu, assim, além da preocupação religiosa, uma preocupação moral.

Parece que esse foi o fermento nos anos 60. Nas vésperas do golpe, a Igreja se declarou a favor da reforma agrária, mas respeitando o direito de propriedade. Ela estava fazendo claramente a opção por um capitalismo humanizado. Depois veio o golpe e, sobretudo, a política implantada na Amazônia, e é lá que se dá uma grande mudança na orientação pastoral dos bispos. É na Amazônia que apareceu dom Pedro Casaldáliga, que tomou posse na prelazia de São Félix do Araguaia em 1971. Dom Tomás Balduíno, que já estava fazendo um trabalho com os índios na região do Araguaia, foi para Goiás Velho.

Esses bispos descobriram uma coisa importante na Amazônia: o que estava acontecendo naquela região era justamente a expansão do capitalismo, mas não de um capitalismo que salvaria a condição, a decência, a dignidade e a sobrevivência das pessoas. Ao contrário, tratava-se de um capitalismo que brutalizava e escravizava. Dom Pedro Casaldáliga percebeu isso imediatamente, pois ao chegar em São Félix as primeiras pessoas que o procuraram foram escravos fugidos, alguns morrendo. Dom Pedro relatou esses e outros fatos em sua carta de 1971. Tenho inclusive uma fotografia dele enterrando um sujeito sendo carregado em uma rede, ainda vestido de batina, todo de branco, recém-chegado.

O capitalismo veio bater na porta dos bispos, e mostrou sua verdadeira face, não aquela que aparecia nos documentos e nas teorias, não aquela que aparecia na ilusória suposição de que com o desenvolvimento capitalista os problemas da população estariam resolvidos. Pensava-se que o que prejudicava o Brasil era o Brasil arcaico. Havia um debate polarizado em torno disso, e a Igreja Católica participou muito desse debate do Brasil moderno contra o Brasil arcaico. A pressão da Igreja foi muito importante para a criação da Sudene, com a perspectiva de modernizar o Brasil, criar empregos e alternativas de vida, melhorar as condições de vida da população em geral.

Na Amazônia, esse modelo da convivência com o capital, gestado pelos bispos do Nordeste, não funcionou, porque não se tratava disso. Na Amazônia também houve incentivo fiscal e grandes propostas de desenvolvimento. Os fazendeiros queriam cooptar a Igreja para a violência que estavam cometendo, uma violência óbvia em que as pessoas apanhavam, eram assassinadas, tentavam fugir e eram amarradas, trucidadas. Dom Pedro, e os padres que trabalhavam com ele, testemunharam tais fatos inúmeras vezes.

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