carrossel

UOL

sábado, 29 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 14)

Igreja e sociedade: a opção pelas minorias

ESTUDOS AVANÇADOS - Nas suas andanças pelo interior do Brasil, pelo Norte, você tem tido oportunidade de assessorar a Pastoral da Terra e tem conhecido por dentro o que é a posição da Igreja Católica, ou pelo menos de inúmeros bispos da Igreja Católica, em relação ao problema da escravidão, ao problema dos índios, enfim, das conseqüências todas do capitalismo no Brasil e no mundo. Gostaria que você, com toda liberdade, nos desse a sua interpretação dessa mudança que ocorreu, particularmente a partir dos anos 60, no interior da Igreja, e que perdura apesar do contravapor conservador dos últimos anos. Como você vê essa opção preferencial pelos pobres que vem sendo a marca coerente de parte da Igreja Católica?
J. S. M. - Sei que esse é um tema que tem sido objeto de muita preocupação por parte não só de católicos mas de protestantes também, porque algumas igrejas protestantes passaram por um processo parecido, e outras passaram por um processo parecido ao contrário, como é o caso da Igreja Presbiteriana, que se radicalizou na linha oposta nos anos 60, aderindo e justificando a ditadura.

Para que se entenda o que vou dizer a seguir, retomo algumas questões relacionadas às igrejas protestantes no Brasil. Com o golpe de Estado de 1964, houve uma "protestantização" do Estado brasileiro, antes impensável. Pela primeira vez na história do Brasil, protestantes, sobretudo das igrejas tradicionais calvinistas, tiveram acesso ao poder. Em Pernambuco e no Rio de Janeiro, foram eleitos governadores que eram presbiterianos. Em São Paulo, uma parte do governo Laudo Natel veio da Igreja Presbiteriana, por meio do colégio Mackenzie. Tivemos, finalmente, o presidente Geisel, de origem luterana. Não estou acusando as igrejas protestantes de serem coniventes com a ditadura, embora algumas tenham efetivamente sido. Mas esse fenômeno não foi ainda investigado e analisado como deveria.

No Brasil, onde os militares parecem ser, tradicionalmente, anticatólicos - em parte, por serem positivistas - parece ter havido um certo encontro de oposições religiosas nessa questão, o que não foi, em princípio, negativo. O mesmo aconteceu nos Estados Unidos, onde a Igreja Católica é muito avançada quanto à questão social. Quanto ao Brasil, parece que o Estado foi sendo "protestantizado" e que a Igreja Católica foi se transformando, institucionalmente, numa igreja de minorias e não de maiorias. Quando me refiro a minorias e maiorias, estou pensando em termos de poder, não em termos numéricos.

Nunca conversei com bispos sobre este assunto para saber se de fato eles perceberam esse processo. Se realmente aconteceu, foi um bem enorme para a Igreja Católica porque fez com que ela se desvencilhasse de um vínculo que possuía com o Estado e passasse a seguir sua vocação, seus princípios, suas concepções com muito mais liberdade, sem fazer concessões políticas ou se intimidar em face do poder.

Este é um ponto que tenho como referência ao refletir sobre o porquê da Igreja Católica ter dado passos tão importantes na direção em que deu. Evidentemente, esse processo já vinha acontecendo antes do golpe de 64. Venho de uma região que teve um dos chamados bispos progressistas, que me impressionou muito no período em que eu trabalhava na fábrica. Seu nome era dom Jorge Marcos de Oliveira. Era um homem que ia apoiar greve na porta da fábrica, para escândalo dos padres, que ficavam horrorizados com sua atitude.

Na minha cidade os padres eram extremamente conservadores, possivelmente velhos padres italianos fascistas. Eu inclusive colhi documentos na Itália sobre outras questões e descobri que alguns tinham até uma certa admiração por Mussolini, postura que também foi própria de uma certa época. É neste contexto que chega dom Jorge, aí pela segunda metade dos anos 50, para fazer as mudanças que achava que deveria fazer e para disputar espaço com o Partido Comunista na região. Ele não veio brigar com os comunistas; ao contrário, veio conviver com eles, reconhecendo a legitimidade da mediação ideológica e partidária deles. Dom Jorge deu uma grande lição de abertura nesse sentido, em fins dos anos 50 e começo dos 60. Nessa época já havia outros trabalhos desse tipo, como aquele realizado por dom Hélder no Rio de Janeiro, de onde também vinha dom Jorge.

Tenho lido essa questão da mudança de orientação na linha da Igreja não como uma simples mudança ou conversão, mas como um desbloqueio da coerência de sua opção ética e religiosa. Chego a ficar irritado quando as pessoas falam na conversão dos bispos por achar absolutamente desonesto pensar que até ontem eles agiam contra os pobres, contra o povo, e de repente alguma coisa aconteceu na vida deles e fez com que mudassem. É nesse sentido que não concordo com a idéia de conversão, pelo menos não entre os bispos que eu conheço.

Conheço muitos bispos no Brasil. Quando assessorei uma assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fiquei muito impressionado com eles. Com exceção de dois ou três casos de bispos mais intransigentes e fechados, todos se mostraram muito abertos para discutir, conversar, mudar de opinião, apoiar os que estavam em mais dificuldades, como os bispos da Amazônia numa determinada época. Assim, não acho que tenha havido conversão mas uma mudança na visibilidade de sua ação, além de uma maior solicitação de seu empenho pessoal. Aquele bispo que ficava no palácio episcopal - que freqüentemente não era realmente um palácio -desaparece e dá lugar a um bispo que é como dom Jorge: vai para rua, para a porta das fábricas.

No Brasil, essa atitude está também relacionada ao fato de que boa parte dos bispos vêm de regiões camponesas tradicionais. Por isso, a dimensão afetiva da vida, da decência das pessoas, está muito presente neles. Os bispos estrangeiros também vem quase todos de famílias camponesas, geralmente italianas ou espanholas. Talvez essa questão possa ser explicada um pouco por esse clima sociológico da condição de origem, do recrutamento dos bispos.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 14)

Terceirização, baixa renumeração e desemprego

ESTUDOS AVANÇADOS - Entendo que essa seria uma teoria imanente do capitalismo na fronteira, nas regiões periféricas?

J. S. M. - Não só na fronteira, mas em todas as regiões em que ele tenha que apelar em proporção muito grande à mão-de-obra, em que não possa tecnificar o processo produtivo. Nessas áreas, então, a tendência seria justamente encolher a proporção da participação do trabalho na composição orgânica do capital, de maneira a dar falsamente a dimensão de uma composição orgânica alta e não de uma composição orgânica baixa. Ou seja, os setores atrasados da economia podem estar na fronteira, mas podem estar também na indústria e na cidade. É o que está acontecendo com a terceirização, por exemplo, que tende a funcionar como se os trabalhadores fossem capitais de alta composição orgânica quando, de fato, são capitais de baixa composição. É nesse sentido que o trabalho passa a ter sua remuneração crescentemente reduzida.
ESTUDOS AVANÇADOS - A variante dessa tendência, nos países desenvolvidos, seria o aumento do desemprego?

J. S. M. - O aumento da terceirização, já que o desemprego é um de seus componentes estratégicos. O trabalhador é despedido - e isto está acontecendo maciçamente no mundo inteiro -, e para se reempregar o faz como se fosse empregado de si mesmo, passando a vender sua força de trabalho não por aquilo que necessita para sobreviver, mas concorrendo com os meios de produção. Em outras palavras, ele não concorre com os outros trabalhadores mas com os meios de produção.

O desemprego é apenas um dos resultados desse processo, ou seja, cria-se maciçamente desemprego, substituindo o trabalhador por tecnologia, e a mão-de-obra ainda necessária para fazer funcionar a tecnologia tem de concorrer com a própria tecnologia. Recentemente, acompanhei uma reportagem na televisão na qual se afirmava estar havendo uma redução brutal de salários, inclusive de pessoal técnico altamente qualificado. Já há engenheiros se proletarizando, sendo tercerizados, indo às fábricas como se fossem empresários oferecendo uma mercadoria. Só que essa mercadoria é constituída pelos próprios serviços que podem executar e não mais sua força de trabalho, embora esta força esteja embutida na mercadoria que oferecem.

ESTUDOS AVANÇADOS - Nessa atual situação, como é que você vê as investidas contra a legislação trabalhista no meio rural?

J.S. M. - Ela não está acontecendo apenas no meio rural, mas também na cidade. Os empresários estão fazendo discursos de desregulamentação da legislação do trabalho, dos direitos sociais, dos direitos trabalhistas adquiridos, porque assim criam o trabalho puro. Ele se torna estritamente aquilo que eles necessitam em termos de força de trabalho, sem qualquer responsabilidade social da empresa.

É um argumento canalha, porque a idéia em relação aos trabalhadores é basicamente a seguinte: abram mão de seus direitos e concorram com a máquina. No meio rural, não se trata de uma volta ao passado. Não se quer voltar, por exemplo, ao tempo do colonato, em que não havia regulamentação da força de trabalho mas havia uma alta responsabilidade social dos fazendeiros porque eles eram os protetores daqueles trabalhadores, ofereciam terra, faziam favores e os ajudavam, mesmo com toda a violência existente nessa relação.

Agora é diferente. Agora os fazendeiros querem desregulamentar mas não querem, por exemplo, oferecer terra para as pessoas trabalharem gratuitamente, como compensação por essa desregulamentação. Eles não estão falando numa reforma agrária compensatória, realizada inteiramente nas mesmas fazendas, para absorver esta mão-de-obra. Aliás, essa proposta seria irrealista, porque no meio rural todo o trabalho já está fragmentado, não se trata mais do mesmo processo de trabalho de antigamente, em que o trabalhador tinha trabalho o ano inteiro. Agora se tem trabalho em épocas específicas, no corte da cana, na colheita do café.

O que se quer é desregulamentar aquilo que é puramente setorial, ou seja, aquilo em que é preciso que haja direitos trabalhistas. Quer-se, efetivamente, promover um retrocesso histórico e não a criação de formas mais humanizadas de relacionamento quanto ao que está acontecendo atualmente, não só no campo mas também na indústria, que está fazendo o discurso da desregulamentação. Aliás, esse discurso está sendo feito no mundo inteiro, em todas as áreas atingidas pela globalização.

ESTUDOS AVANÇADOS - Vamos acabar descobrindo que a escravidão é o horizonte do capitalismo...

J. S. M. -É o que já se tem na índia. Os pais vendem os filhos e se vendem, porque assim o patrão é obrigado pelo menos a sustentá-los. E isto é algo que não estava nas cogitações de ninguém quando discutíamos teoricamente o capitalismo, nem passava pelas nossas cabeças que isso iria acontecer. E não se trata do arcaico renascendo. É uma escravidão nova, é algo absolutamente novo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 13)

Trabalho escravo: do conceito de lucro ao de renda

ESTUDOS AVANÇADOS -Se passarmos dessas considerações, de fato tão terríveis, para uma enésima revisão das relações entre liberalismo e escravidão, poderíamos, talvez, remontar à própria teoria segundo a qual há uma incompatibilidade entre liberalismo e escravidão, e verificar o quanto esta teoria parece ter nascido de um resíduo de admiração do marxismo pela cultura burguesa. Quer dizer, parece que o marxismo, num modelo inicial de O Capital, dá à burguesia uma função extraordinária, de libertação. Criou-se uma cultura marxista, muito coerente, que certamente dura até hoje, que continua a fazer correlações muito fortes entre burguesia liberal e libertação do indivíduo. Entretanto, todas as evidências parecem desmentir a solidez dessa relação. Em que medida haveria a possibilidade de uma releitura de Marx, relativizando e às vezes contrastando diretamente essa vinculação entre burguesia liberal e libertação do indivíduo?

J. S. M. -Justamente aí há uma grande coincidência entre Marx e Weber. Os dois têm exatamente a mesma interpretação a respeito do papel redentor do capital na libertação da pessoa, no aparecimento do sujeito livre, capaz de contratar livremente, e de como ele é positivo para o desenvolvimento do capitalismo.

Marx já havia percebido que as coisas podiam não ser assim. Mesmo em O Capital há uma referência à questão dapeonagem na América Latina, sobretudo no México, onde pessoas que não eram escravas eram, no entanto, endividadas e vendidas pela dívida a outras pessoas, e as dívidas eram herdadas pelos filhos dos trabalhadores, e assim sucessivamente.

Este tema é retomado por Rosa Luxemburgo com mais consistência. Ela estava concretamente preocupada em negar um pouco essas pressuposições iluministas que estão por trás da obra de Marx. Acredito que haja em Marx algumas pistas importantes para pensar esse assunto mas, infelizmente, O Capital é inacabado. Parece que a redação de O Capital foi interrompida exatamente no momento em que ele iria tocar mais de perto no assunto, e logo depois ele morreu. Mas há indicações para se repensar teoricamente essa questão. Marx faz pelo menos uma referência importante para se pensá-la, ao dizer expressamente, no tomo terceiro de O Capital, que o escravo era renda capitalizada.

Ao definir o escravo como renda capitalizada, exatamente como a terra também o é, Marx resgata a dimensão irracional do trabalho escravo não em termos de inviabilização da contabilidade de custos da empresa capitalista e, portanto, da reprodução ampliada do capital em termos racionais e modernos. Entretanto, ao remeter a questão do trabalho escravo à questão da renda, afirmando que este seria similar à renda fundiária porque seria também uma forma de renda antecipada no ato de compra do trabalhador, Marx nos remete ao campo teórico no qual se pode explorar o tema da escravidão, o território da renda e não o território do lucro.

Todo o equívoco dos intérpretes de Marx que aceitaram a idéia de um papel redentor do capital e do capitalismo em relação ao trabalho está baseado no fato de que eles pensam a questão do trabalho escravo no âmbito do lucro, enquanto o próprio Marx afirma ser mais conveniente pensar o problema do trabalho escravo no âmbito da renda territorial, sendo o trabalho escravo similar à renda da terra. Esta seria uma primeira pista.

Na minha opinião, uma segunda pista diz respeito à questão da composição orgânica do capital. Desenvolvo este tópico no segundo capítulo do livro Fronteira, no qual abordo expressamente a questão do trabalho escravo e, particularmente, as bases teóricas dessa escravidão recente. Marx já havia chamado a atenção para a questão da composição orgânica do capital e, sobretudo, para um aspecto importante desta composição que normalmente não é discutido: a fenomenologia da consciência do empresário quando ele organiza seu capital.

Nesse sentido, o empresário não pensa em termos de valor, no sentido marxista, mas em termos de lucro, ou seja: pensa no fenômeno do valor e não no valor stricto sensu, na expressão fenomênica do valor. Ao fazê-lo, estabelece o seguinte: em áreas extremamente atrasadas, como é o caso da Amazônia e de vários países da África e da Ásia, a taxa de lucro tem de ser "x". Ele raciocina de trás para frente, e não como o teórico faz, de frente para trás. Se a taxa de lucro tem de ser "x", o investimento de capital constante, equipamentos etc., tem de ser "y". O trabalho é remunerado com o resíduo dessa composição orgânica, ou seja, não entra contabilisticamente na composição orgânica do capital em termos das necessidades do trabalhador mas em termos da necessidades do capital, o que foi dito por Marx. Com isso, um capital de baixíssima composição orgânica, como é o caso nas remotas regiões de fronteira econômica, aparece e funciona como capital de alta composição orgânica, nos setores mais centrais e modernos da economia.

Quanto mais se desenvolve o capitalismo - e, portanto, mais importante se torna o capital constante -, para que não haja uma exacerbação quantitativa do capital variável - o trabalho - este vai sendo reduzido ao ponto de que chega um momento em que é preciso escravizar o trabalhador para que o capital continue se reproduzindo. E não é mais escravização no sentido clássico da palavra, porque não há um investimento prévio de capital no escravo. O escravo é reescravizado diariamente. Por isso, essa escravidão é muito mais repressiva, muito pior do que a escravidão negra que conhecemos, muito mais violenta e, ao mesmo tempo, ainda se trata de escravidão.

Para se repensar teoricamente essas questões a partir do próprio Marx, retirando o que de ideologicamente iluminista há nele em relação a esse tema, proponho o enfoque sobre esses dois pontos: a questão do escravo como renda e a questão da subordinação do capital variável ao conjunto da composição orgânica do capital.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 12)

Trabalho escravo contemporâneo

Estamos trabalhando com a hipótese de que haja 200 milhões de escravos no mundo hoje, e 200 milhões é muita gente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu relatório de 1993 reconhece a existência de seis milhões de escravos. Nós estamos incluindo crianças, que trabalham como prostitutas na Tailândia e são vendidas na índia, contraem Aids e depois são deportadas pelo governo da índia. Os pais não as aceitam de volta - foram eles que venderam as filhas -, e essas crianças precisam urgentemente de programas de recuperação e de reeducação para assegurar um mínimo de decência em suas vidas, enquanto elas sobreviverem.
O pedido mais dramático que recebemos em 1997 veio dos pigmeus do Camerum, que estão sendo escravizados pelos bantos, povo do qual sairam muitos escravos para o Brasil. Crianças pigméias estão sendo vendidas, compradas ou caçadas. No Sudão ainda se fazem expedições de caça para prender pessoas e vendê-las depois. Este é um quadro que desmente completamente essa enorme e desonesta fantasia a respeito do papel criador do capitalismo: inovador, modernizador, difusor da cidadania, uma mentalidade de classe dominante, de país rico. O que nós estamos observando é que a verdade não é essa.

Quando o secretário-geral nomeou a mim e à representante da Inglaterra como novos membros, ele mandou aos governos um apelo desesperado, chamando atenção para o fato de que o número de escravos no mundo estava crescendo muito rapidamente em função da globalização, com a difusão do modelo asiático de desenvolvimento capitalista, totalmente diferente do modelo clássico porque é baseado num esquema de transferência de todos os ônus sociais e econômicos para o próprio trabalhador.

Esse modelo cria diversas situações específicas. Primeiro, uma situação de extrema concorrência entre os próprios trabalhadores; em segundo lugar, o uso desta concorrência como técnica de rebaixamento de salário. As pessoas começam a aceitar trabalhar simplesmente pela comida e alguns, nesse limite, começam a vender os filhos. Existe comércio de filhos em vários lugares do mundo.

Na China socialista está surgindo um problema: ela está sendo atingida pelo modelo de compra de mulheres, por parte dos camponeses, devido a uma carência de mulheres para o matrimônio e para o trabalho. Em função da política de controle de natalidade, os pais mataram deliberadamente as meninas para que apenas os filhos do sexo masculino sobrevivessem, o que criou esta carência. O modelo de trabalho escravo, de compra e venda de pessoas, está se difundindo em toda a parte. Tanto na antiga Rússia, no Cáucaso, como nos Estados Unidos, há o aparecimento de casos de escravidão.

O quadro é absolutamente alarmante, mas a esquerda parece estar discutindo neoliberalismo e globalização da maneira mais fantasiosa que se possa imaginar. Não está fazendo pesquisas sobre as conseqüências mais dramáticas desse novo processo e não consegue desenvolver argumentos de natureza moral, caindo no nacionalismo, que não é um bom argumento para combater a escravidão.

É o que estamos vendo no Brasil. Seria necessário, justamente, abrir a consciência para o amplo processo dedestroçamento moral das populações pobres do mundo inteiro, inclusive nos países desenvolvidos. Este é um fato muito grave.

ESTUDOS AVANÇADOS -Se um leitor da revista soubesse, por meio de pesquisas ou contatos, de casos de escravidão, o que deveria fazer, concretamente, em termos de denúncia e de processo?

J. S. M. - Em primeiro lugar, deve verificar a consistência e a procedência da denúncia. Têm havido denúncias em lugares de acesso remoto e difícil que, ao serem verificadas, não são verdadeiras. No Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu formalmente, em 1996, num pronunciamento pelo rádio, a persistência da escravidão no país. Foi a primeira vez que isso aconteceu desde 1888. Na mesma ocasião, ele criou um grupo interministerial, o Gertraf (Grupo de Repressão ao Trabalho Forçado), no Ministério do Trabalho.

É um grupo executivo com poderes acima de todos os delegados regionais de trabalho, que em geral não estavam combatendo a escravidão. Ele é subordinado diretamente ao presidente da República e mobiliza, ao mesmo tempo, todos os órgãos que, por lei, estão destinados ao combate desse tipo de situação, inclusive a Polícia Federal. Normalmente, eles são eficazes com relação a denúncias.

A denúncia também pode ser mandada à Comissão Pastoral da Terra, em Goiânia, local de funcionamento de seu secretariado nacional. Com relação a questões de trabalho escravo, a Comissão Pastoral da Terra tem trabalhado em colaboração com o Gertraf, e geralmente repassa a informação e colabora para que o caso seja apurado. O responsáveis são punidos e os trabalhadores libertados e indenizados.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 11)

A ONU e o trabalho escravo

ESTUDOS AVANÇADOS - Essas múltiplas situações de escravidão hoje são de domínio público. Pode-se lê-las nos jornais. Soube que, recentemente, você foi admitido a um grupo internacional cuja finalidade é a denúncia, o estudo da escravidão. De que grupo se trata?

J. S. M. - Em 1991, a Assembléia Geral das Nações Unidas criou a Comissão de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão. Já faz uns 20 anos, aproximadamente, que a ONU reconhece que existe escravidão em vários países; em alguns, a escravidão era oficial e legal, como o caso do Sudão e da Mauritânia. Porém, conforme o problema foi se agravando, em vez de ser controlado e reduzido foi se tornando cada vez maior. Por essa razão, a Assembléia Geral decidiu criar um grupo que organizaria a pauta de trabalhos do chamado Grupo de Trabalho sobre o Trabalho Escravo, um grupo que envolve embaixadores, ONGs e outros grupos.
O grupo foi criado em 1992 pela Assembléia Geral, e é constituído por cinco pessoas, uma de cada continente, nomeadas pelo secretário-geral. Fui nomeado representante das Américas em 1996. Somos especialistas, pessoas que nos seus respectivos países e continentes têm algum trabalho relevante em relação ao tema. Nós devemos nos reunir em Genebra duas vezes por ano para examinar os casos, ocorrências, denúncias e pedidos de socorro.

Entre outras coisas, temos a tarefa de viabilizar que as vítimas possam se apresentar diretamente ao órgão da ONU que trata do assunto, que é o Grupo de Trabalho, que faça suas denúncias e peça interferência, podendo, inclusive, convocar os embaixadores e exigir dos respectivos governos o cumprimento dos tratados internacionais de 1926 e 1957, assinados por quase todos os países. Ao fazê-lo, esses países renunciaram à escravidão, comprometendo-se a combatê-la.

O grupo tem uma eficácia muito limitada por causa da falta de recursos. Quando nos reunimos em abril último, tínhamos umas duas dezenas de denúncias, vindas especialmente da África e da Ásia. Pedidos de socorro, de ajuda para projetos de intervenção para libertar pessoas, para reeducar pessoas, entre outros. Dispúnha-mos apenas de US$ 12.500 e o total dos pedidos chegava a US$ 700.000, ou seja: não tínhamos absolutamente nada.

Em nosso trabalho, tem sido difícil sensibilizar as pessoas, especialmente governos, para que contribuam para o Fundo da ONU para que esta possa interferir efetivamente no trabalho educativo, no trabalho de dissuasão, e, inclusive, quando for o caso, na libertação de pessoas vitimadas pela escravização. Como temos acesso direto ao plenário da Assembléia da ONU, tanto em Nova York como em Genebra, uma parte de nosso trabalho é ir aos plenários, já que os embaixadores não vêm a nós, e sentar ao lado de cada um, conversando com eles individualmente e pedindo que se interessem pelo problema. Para se ter uma idéia da gravidade do problema, durante anos, apenas um governo do continente americano - o qual eu represento - deu uma pequena contribuição: o governo do Chile, que doou US$ 2.500, e nenhum outro. Conversando com o embaixador de Cuba, a quem fui pedir que pelo menos comparecesse a nossa reunião para tomar conhecimento da gravidade do problema, fiquei muito decepcionado. Apesar de não ser esse o caso de Cuba, está aparecendo trabalho escravo nos Estados Unidos, por exemplo. Primeiro, o embaixador cubano tentou me descartar, e depois disse que iria à reunião - uma questão de dez minutos para ouvir um relato - e não foi. A mesma coisa aconteceu com outros governos. Fui atrás do embaixador da Itália, ele me recebeu muito formalmente e disse que a Itália, no momento, estava passando por grandes dificuldades e não poderia dar uma contribuição.

As contribuições solicitadas são ridículas. O que nós esperamos para o Fundo são contribuições governamentais de US$ 1.000. Quer dizer, se os governos derem o dinheiro, teremos recursos para fazer alguma coisa. Na conversa com o embaixador italiano, quase fiquei com vontade de dar dinheiro para ele salvar o governo de seu país. Tive que dizer para ele: "Não esqueça que a Itália foi uma grande exportadora de camponeses, que foram trabalhar em condições de servidão na América, especialmente no meu país". A Itália é emblemática, e precisa entrar num processo de ajuda desse tipo. Houve um cidadão italiano que doou ao Fundo US$ 500, e o governo italiano não deu nada. É algo muito complicado.

O governo brasileiro ainda não contribuiu, apesar de ter um programa bastante interessante de combate à escravidão; aliás, um programa eficiente, que está dando certo. Falei com o secretário da embaixada e pedi que o governo brasileiro se interessasse, para dar um exemplo nessa história. Nossa situação, enfim, é muito difícil, pois temos poucas doações. Cada um de nós está se esforçando para ver se convence esses governos a fazer alguma coisa.

Dos poucos representantes diplomáticos de organizações não-governamentais que atenderam nosso pedido, a embaixatriz da Índia compareceu a uma de nossas reuniões, pela primeira vez em oito anos, e fez uma manifestação vigorosa de apoio ao nosso trabalho. O presidente da comissão também é da índia. Compareceu também um jovem representante dos Estados Unidos, ligado aos direitos humanos, que esteve na reunião por dez minutos, e ele disse: "Os governos não contribuirão, não se iludam a respeito disso. Eles criam as comissões na Assembléia Geral para se desvencilhar da pressão da opinião pública nos seus respectivos países, mas depois, de fato, não dão dinheiro, não contribuem e não asseguram a execução dos projetos. Minha sugestão a vocês é que mobilizem a sociedade civil dos diferentes países para que ela se inquiete com a imoralidade da persistência da escravidão".

domingo, 9 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 10)

Releitura de Marx: a multiplicidade do tempo presente

ESTUDOS AVANÇADOS - Você poderia historiar, um pouco, o momento em que sua atenção foi solicitada para a presença da escravidão ainda viva no Brasil contemporâneo?

J. S. M. - Comecei a me preocupar com a possibilidade de que isso podia estar acontecendo no momento em que, com a ditadura, tornou-se necessário refazer alguns caminhos no conhecimento do que é o Brasil. Muitos de nós passamos por esse desafio. As nossas certezas de 1963 se tornaram as nossas incertezas de 1964. Todos passamos por esse processo, de diferentes maneiras, em diferentes âmbitos da produção do conhecimento.
Era necessário rever os fundamentos das velhas certezas agora incerta. Havia muito de insuficiente, precário, no conhecimento que se tinha. Uma das coisas que fiz e promovi entre alunos de pós-graduação foi a releitura de Marx. Ficou evidente que a leitura das obras de Marx, que muitos alardeavam, era mais "cultura de corredor" da universidade do que de sala de aula. Tanto Florestan Fernandes quanto Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Marialice Foracchi, e mesmo Maria Sylvia Franco, as pessoas que mais trabalharam com Marx, de maneira nenhuma sucumbiram às concessões de natureza ideológica e, por isso mesmo, nunca foram benquistos pelas esquerdas em geral. Alguns continuam não sendo, porque não estão perfilhando as concepções da esquerda institucional.

No caso do grupo de Florestan, a preocupação era com a questão metodológica na obra de Marx, o que continuou na minha geração. Os professores do seminário d'O Capital já estavam aposentados desde 1969. Em 1975, decidi que era hora de rever algumas certezas e de fato propor uma leitura séria de Marx a alunos de pós-graduação. Iniciei, então, um seminário sobre a obra de Marx, realizado todas as sextas-feiras, durante 13 anos, no departamento de sociologia da USP.

A leitura de Lefebvre veio na seqüência do seminário de Marx. Lemos praticamente toda a obra de Marx, inclusive relendo algumas coisas, e foi possível descobrir temas, questões, procedimentos e orientações que estavam totalmente esquecidos, que haviam sido deixados completamente de lado pelo discurso esquerdista dominante. Por exemplo, a enorme importância metodológica dos Grundrisse em relação a O Capital. Os Grundrisse, para um país subdesenvolvido, periférico, são muito mais importantes do que O Capital. O Capital é uma obra inacabada, e os Grundrisse são rascunhos que tocam em temas que são os nossos temas, temas da diversidade dos nossos tempos históricos, diferentes do que acontece na Europa, onde tudo tende para um tempo histórico relativamente homogeneizado, apesar dos monumentos e das evidências de uma temporalidade que não é a do presente.

No nosso caso, a mistificação é diferente, a impressão é a de que não existe história. Aqui, todos somos modernos. Todos tomamos coca-cola, comemos hambúrguer, pensamos do mesmo jeito, vemos as novelas da Globo. Quer dizer, essa é a suposição geral. Mas na verdade, as sociedades latino-americanas têm uma diversidade real de tempos históricos muito maior do que somos capazes, como intelectuais, de supor. OsGrundrisse de Marx ajudam a pensar essa diversidade de tempos históricos que não são residuais; o importante em Marx está nisso. Para ele, essa diversidade de tempos está ligada a uma certa concepção de história, de transformação, mas não se trata de tempos residuais. São tempos contemporâneos convivendo simultaneamente.

Há uma tese da maior importância na obra de Marx, especialmente no chamado Capítulo Inédito de O Capital, que Lefebvre retoma e transforma no fundamento de sua obra: trata-se da preocupação com o desencontro entre reprodução e produção de relações sociais. Ou seja, essa multiplicidade de tempos presentes, no processo histórico, implica em que a sociedade se reproduza continuamente, além de produzir o novo continuamente. Portanto, o processo histórico é um processo de desencontro entre o que se quer transformar e o que se quer preservar, é este o processo contemporâneo. O contemporâneo não é apenas a promessa do destino, da transformação, do futuro.

O fazer história não é optar utopicamente, ideologicamente, por um modelo de sociedade que seria a sociedade do futuro. É mergulhar fundo nesse conflito de tempos, descobrir nas relações reais e desencontradas as novas possibilidades sociais e realizá-las. Num país como o nosso, a própria idéia de conflito não é apenas de conflito entre classes. É conflito entre classes, entre etnias, entre grupos sociais que não estão configurados como classe, que estão mergulhados em tempos que se desencontram. Mesmo numa cidade como São Paulo, tem-se folia-de-reis, folia-do-divino. Resquícios? Recriações para dar sentido no urbano ao que o próprio urbano e o fabril não revestem de sentido. No caso da folia-do-divino, que existe na periferia, em São Bernardo e Osasco, há a presença de um forte elemento da utopia milenarista de Gioacchino da Fiore, base das concepções revolucionárias do tempo histórico.

É preciso, então, aprender a fazer uma etnografia dessa diversidade de tempos históricos. Descobrimos que a história se anuncia nesse desencontro, e não nas utopias gratuitas. Se aguçamos nossa sensibilidade para perceber essas coisas é possível ver que, ao contrário do que em geral se assume e se diz ideologicamente, o capitalismo não gesta apenas o futuro moderno, tecnologicamente avançado. Ele gera isso e, ao mesmo tempo, o seu contrário.

Quando fui desenvolver minha pesquisa na Amazônia, em 1977, já munido dessas informações e orientações, fui justamente numa área de fronteira em que, supostamente, o capital estava implantando sua racionalidade mais acabada e mais moderna. E de fato ele estava, mas a um preço humano e social tremendo, da devastação e da destruição de grupos sociais, de grupos indígenas e de grupos camponeses. Destruição de relações sociais e, ao mesmo tempo, gestação de trabalho escravo. Curiosamente, ninguém mencionou este aspecto, a não ser dom Pedro Casaldáliga, em sua famosa Carta Pastoral de 1971. Quando se começa a observar a realidade amazônica desse período (dois terços do território brasileiro), descobre-se que quase todos os grandes grupos nacionais e multinacionais mais sofisticados, grupos de ponta no processo de reprodução ampliada do capital em plano mundial, estavam profundamente envolvidos na prática da escravidão. Ou seja, essas duas coisas estavam juntas e não separadas como sugeria o marxismo vulgar.

Rosa Luxemburgo, no livro Acumulação de Capital, também observou essas questões. Marx havia prestado atenção nisso nos Grundrisse, mas não em O Capital. Em O Capital ele enxugou o modelo de capitalismo, transformou-o numa quase abstração. O desafio é, portanto, tentar entender como essas coisas rotuladas de modernas e arcaicas na verdade não são opostas, nem caminham separadas, mas caminham juntas, uma sendo necessidade da outra, numa tensão, numa luta, constante. Uma reproduz e recria a outra, e vice-versa, recriando, portanto, estilos de violência profundamente enraizados numa restauração nociva e negativa do arcaico.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 10)

Medos e rupturas, memória do subúrbio

Esses episódios, que aparentemente não se conectam entre si, vão descrevendo um cenário de tensão, de medo, de descontinuidade, de rupturas e de desafio, que é o cenário do subúrbio. É na periferia que se consegue observar melhor esse processo, o que reforça exatamente o contrário do que Marx disse, de que era preciso estar em Londres para observar o que era o capitalismo no mundo. Eu diria: é preciso estar na periferia para observar efetivamente o que ele é. Esta, aliás, é uma sugestão do próprio Marx em um trabalho que pouca gente lê, seu estudo sobre a Irlanda. Vê-se melhor a Inglaterra estudando a Irlanda do que estudando Londres, idéia que desfaz um pouco o que Marx disse em O Capital.

A idéia, no caso de Subúrbio, foi a de recuperar como referência metodológica a perspectiva de quem está à margem dos cenários dominantes e dos processos dominantes. A industrialização no cenário rural, que foi o que ocorreu na atual região do ABC, trazia para esse mundo bucólico os ritmos próprios da fábrica e, portanto, um dos ingredientes básicos da vida cotidiana. E aí a vida cotidiana revela melhor o que ela é, no contraste com os componentes da cena: a vivência do medo, do que não tem sentido aparente.
Todos os anos vou a Paranapiacaba com meus alunos. Vamos de trem de subúrbio e tudo o mais, com direito a muita chuva e neblina, como é próprio daquela região. Paranapiacaba foi o primeiro posto avançado da sociedade moderna no planalto paulista, momento e parte da ferrovia, acampamento de operários. Foi o primeiro lugar de estabelecimento do que se poderia chamar de vida cotidiana em São Paulo. Hoje está praticamente em ruínas. Paranapiacaba foi concebida como uma vila operária, segundo o modelo do panóptico de Benthan, estudado por Foucault, de modo que os engenheiros pudessem, a qualquer hora do dia, inspecionar a vida de seus operários, tanto no trabalho quanto em casa. Quando se vai à casa em que morava o engenheiro-chefe e onde trabalhavam os engenheiros, de cada janela pode-se ver qualquer lugar de Paranapiacaba, incluindo até o pátio de manobras.

Os engenheiros podiam ver tanto a frente quanto o fundo das casas, tanto que a memória dos velhos operários, hoje aposentados, que ainda vivem em Paranapiacaba, é a memória de quando eles eram crianças, vigiados pelos engenheiros. Eles sabiam que estavam sendo vigiados quando à noite o pai chegava em casa e dizia que havia sido advertido porque as crianças tinham feito determinada malvadeza na rua, ou brigado, ou feito algo que não deviam.

Paranapiacaba é um lugar importante para compreender o surgimento da vida cotidiana no planalto paulista, no século XIX. A vila e a ferrovia são as referências fundamentais para compreender a difusão desse novo modo de viver e de pensar na vida dos paulistanos, um novo ritmo de vida, linear. Podemos examinar imensas coleções de documentos sobre o que presumimos ser os sinais do cotidiano na virada do século. Nenhum será mais eloqüente e mais documentativo do que a vila de Paranapiacaba. Ali se vê imediatamente o que foi a chegada da vida cotidiana em São Paulo. É lá que chegou o futebol como instrumento de manipulação, pois foi o primeiro lugar em que apareceu um campo de futebol. A idéia é usar o subúrbio como uma espécie de estação meteorológica do processo de modernização, para tentar observá-lo e vê-lo com mais riqueza. Mas e a memória? O que a memória tem a ver com isso?

A memória é o documento histórico dos que têm medo. É assim que aparece nesta pesquisa. A memória é exatamente a ausência daquilo que minha mãe tinha dificuldade em mencionar: que houve repressão, que as pessoas foram apanhadas dentro de casa numa noite de terror e desapareceram. Há vários desaparecidos dos anos 30 que foram apanhados pela polícia política, pessoas que não se chamavam "Olga" e sofreram uma repressão muito mais brutal do que Olga; os que foram deportados e fuzilados na Espanha, os operários do ABC que passaram por essa experiência, o que não está nos livros da esquerda, não está nos documentos, não está em lugar algum. Está na memória do povo.

A memória é o arquivo histórico do povo, dos pobres, e é assim que ela pode e deve ser tratada. O complicado é que a memória não é simplesmente a lembrança. A memória tem de ser interrogada. Ela tem de ser desafiada e descoberta, pois está escondida lá no fundo da vida dessas pessoas. É um pouco essa a proposta do trabalho que venho fazendo.

sábado, 1 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 9)

Memória e vida cotidiana

Algo que marcou muito minha infância foi uma história que minha mãe sempre contava. Minha mãe, uma mulher muito religiosa - primeiro católica, depois convertida ao protestantismo -, sempre teve medo de que eu me tornasse um subversivo, um comunista; de que eu, eventualmente, me envolvesse com grupos que poderiam ser eliminados pela polícia por razões políticas. Aquilo sempre me inquietou demais, porque não tinha muito sentido. Eu não conseguia ver os perigos que ela via. Sou de uma geração que viveu a chegada, na região do ABC, de dom Jorge Marcos de Oliveira, um bispo politizador por excelência. Apesar de não estar vinculado diretamente à Igreja Católica, pois eu era membro da Igreja Presbhiteriana e, portanto, calvinista, aproximei-me de dom Jorge várias vezes. Desenvolvi atividades com ele, aprendi muitas coisas. Minha mãe se preocupava demais com essa aproximação.

Depois fui descobrindo que por trás do medo de minha mãe havia uma memória: a memória da repressão policial do Estado Novo, na região do ABC, contra os trabalhadores daquela área. O ABC foi a região mais esquerdista do Brasil, dos anos 30 aos anos 50, e São Caetano, em particular - meu foco de interesse -, teve o maior reduto de comunistas de toda a América do Sul, formado por trabalhadores imigrantes, geralmente espanhóis, operários das fábricas. Muitos foram presos no rastro da chamada Intentona de 1935. Houve grande repressão em Santos e no ABC, mortes, desaparecimentos, deportações. O medo de minha mãe era a forma assumida pela memória dessa violência, uma memória de silêncios e recriminações. Em 1947, o Partido Comunista elegeu, sob uma outra sigla, um prefeito e a maioria dos vereadores da Câmara Municipal de Santo André, que abrangia toda a região, menos São Bernardo. Foi o único município do Brasil em que isso aconteceu, e todos foram cassados no dia da posse. No ato da posse, a polícia já estava esperando para que eles não assumissem seus cargos.

Essa região é um lugar onde o escamoteamento do fazer história é muito nítido. Não é que as pessoas não saibam o que estão fazendo: elas têm medo de dizer o que fazem, o que são, o que querem. Foi por essa razão que resolvi investigar intensamente esse tema. Fui descobrindo que, justamente por ser uma região à margem, é o subúrbio da cidade, ali se desenrolava, num mesmo espaço e em diferentes épocas, não uma mesma história, mas várias histórias. Há uma história durante o período colonial, uma história de escravos, de caipiras mestiçados, de quilombos, de revoltas, na época em que todo o bairro antigo estava centralizado na Fazenda de São Caetano, dos monges de São Bento, que se estende pelo período imperial até a criação do núcleo colonial de São Caetano. O núcleo trouxe para a localidade os imigrantes italianos, dos primeiros a chegarem a São Paulo, os colonos para a lavoura de jardinagem que as elites queriam implantar à beira da ferrovia. Posteriormente, há esse período mais recente, da industrialização, da classe operária, dominado essencialmente pelo medo, algo muito diferente do que nas regiões mais centrais da cidade, nos bairros ricos.

A partir dessa perspectiva - perspectiva de quem está à margem do que é dominante, à margem de quem decide -, estou tentando observar o conjunto da sociedade. Subúrbio é o primeiro volume desse trabalho. Em seguida, será lançado o terceiro volume, com vários episódios sobre o tema do medo, decorrente de um clima de repressão muito acentuado. A cultura do subúrbio é repressiva. Ela é politicamente repressiva. As pessoas pagaram altíssimo preço para viver, trabalhar e sobreviver nessas regiões. O que minha mãe me contava era a memória de quem sobreviveu à repressão, mas não ao medo. Ela própria não estava envolvida, mas outras pessoas estavam, amigos, vizinhos, conhecidos.

Estou estudando até mesmo aspectos rituais desse medo, sempre em relação a São Caetano. O medo produziu, no limite, ritos sacrificiais no seio da população, em episódios trágicos, como um parricídio ocorrido num dia de Natal. Escolhi São Caetano porque havia uma boa diversidade de ocorrências sociologicamente ricas e boas informações disponíveis nos arquivos e na tradição oral. A documentação é pouca, mas muito rica. Resolvi fazer este recorte espacial e acompanhar o processo de constituição da sociedade moderna, urbana, cotidiana, a partir desse ponto de referência. Desde o período colonial, o lugar já apresentava uma situação extraordinária, por ser uma fazenda e um bairro dependente da fazenda, não uma fazenda de tipo clássico, estereotipada, mas uma fazenda de uma ordem monástica.

Os beneditinos tinham preocupações humanísticas, inclusive em relação aos escravos. E é entre os escravos da Fazenda de São Caetano que por volta de 1863 há uma pequena revolta que motiva os monges a reverem a escravidão no interior da Ordem, em todo o Brasil. Um monge visitador do Rio de Janeiro vem para São Caetano fazer uma inspeção a propósito do que aconteceu. O problema é levado ao Capítulo Geral em Salvador, que se reunia uma vez a cada dois ou três anos, e é lá que a Ordem de São Bento decide por aquele que será o modelo de extinção da escravidão no Brasil, adotado posteriormente pelo governo, um modelo de extinção gradual. Primeiro, seriam libertadas as mães que tivessem um determinado número de filhos, depois as crianças, e assim por diante.

No dia seguinte à promulgação da Lei do Ventre Livre, a Ordem de São Bento promove a abolição da escravidão em suas fazendas em todo o Brasil, libertando, num ato súbito, quatro mil escravos em todas as suas fazendas. Esse movimento foi decorrência de um gesto de rebeldia, uma revolta simples em que os escravos chegaram para os monges e disseram que não iriam mais trabalhar no que os monges queriam que eles trabalhassem, uma fábrica que havia na região. Essa fábrica, que existia desde 1730, está sendo objeto de um programa de escavação arqueológica do Museu Paulista. Os escravos disseram aos monges que queriam ter sua própria casa no campo, trabalhar na roça, e assim fizeram. Em seguida, o governo imperial desapropriou a fazenda e transformou-a em um núcleo colonial, e um dos primeiros acontecimentos deste período foi uma revolta de colonos contra a proposta do regime de assentamento proposto.