Igreja e sociedade: a opção pelas minorias
ESTUDOS AVANÇADOS - Nas suas andanças pelo interior do Brasil, pelo Norte, você tem tido oportunidade de assessorar a Pastoral da Terra e tem conhecido por dentro o que é a posição da Igreja Católica, ou pelo menos de inúmeros bispos da Igreja Católica, em relação ao problema da escravidão, ao problema dos índios, enfim, das conseqüências todas do capitalismo no Brasil e no mundo. Gostaria que você, com toda liberdade, nos desse a sua interpretação dessa mudança que ocorreu, particularmente a partir dos anos 60, no interior da Igreja, e que perdura apesar do contravapor conservador dos últimos anos. Como você vê essa opção preferencial pelos pobres que vem sendo a marca coerente de parte da Igreja Católica?
J. S. M. - Sei que esse é um tema que tem sido objeto de muita preocupação por parte não só de católicos mas de protestantes também, porque algumas igrejas protestantes passaram por um processo parecido, e outras passaram por um processo parecido ao contrário, como é o caso da Igreja Presbiteriana, que se radicalizou na linha oposta nos anos 60, aderindo e justificando a ditadura.
Para que se entenda o que vou dizer a seguir, retomo algumas questões relacionadas às igrejas protestantes no Brasil. Com o golpe de Estado de 1964, houve uma "protestantização" do Estado brasileiro, antes impensável. Pela primeira vez na história do Brasil, protestantes, sobretudo das igrejas tradicionais calvinistas, tiveram acesso ao poder. Em Pernambuco e no Rio de Janeiro, foram eleitos governadores que eram presbiterianos. Em São Paulo, uma parte do governo Laudo Natel veio da Igreja Presbiteriana, por meio do colégio Mackenzie. Tivemos, finalmente, o presidente Geisel, de origem luterana. Não estou acusando as igrejas protestantes de serem coniventes com a ditadura, embora algumas tenham efetivamente sido. Mas esse fenômeno não foi ainda investigado e analisado como deveria.
No Brasil, onde os militares parecem ser, tradicionalmente, anticatólicos - em parte, por serem positivistas - parece ter havido um certo encontro de oposições religiosas nessa questão, o que não foi, em princípio, negativo. O mesmo aconteceu nos Estados Unidos, onde a Igreja Católica é muito avançada quanto à questão social. Quanto ao Brasil, parece que o Estado foi sendo "protestantizado" e que a Igreja Católica foi se transformando, institucionalmente, numa igreja de minorias e não de maiorias. Quando me refiro a minorias e maiorias, estou pensando em termos de poder, não em termos numéricos.
Nunca conversei com bispos sobre este assunto para saber se de fato eles perceberam esse processo. Se realmente aconteceu, foi um bem enorme para a Igreja Católica porque fez com que ela se desvencilhasse de um vínculo que possuía com o Estado e passasse a seguir sua vocação, seus princípios, suas concepções com muito mais liberdade, sem fazer concessões políticas ou se intimidar em face do poder.
Este é um ponto que tenho como referência ao refletir sobre o porquê da Igreja Católica ter dado passos tão importantes na direção em que deu. Evidentemente, esse processo já vinha acontecendo antes do golpe de 64. Venho de uma região que teve um dos chamados bispos progressistas, que me impressionou muito no período em que eu trabalhava na fábrica. Seu nome era dom Jorge Marcos de Oliveira. Era um homem que ia apoiar greve na porta da fábrica, para escândalo dos padres, que ficavam horrorizados com sua atitude.
Na minha cidade os padres eram extremamente conservadores, possivelmente velhos padres italianos fascistas. Eu inclusive colhi documentos na Itália sobre outras questões e descobri que alguns tinham até uma certa admiração por Mussolini, postura que também foi própria de uma certa época. É neste contexto que chega dom Jorge, aí pela segunda metade dos anos 50, para fazer as mudanças que achava que deveria fazer e para disputar espaço com o Partido Comunista na região. Ele não veio brigar com os comunistas; ao contrário, veio conviver com eles, reconhecendo a legitimidade da mediação ideológica e partidária deles. Dom Jorge deu uma grande lição de abertura nesse sentido, em fins dos anos 50 e começo dos 60. Nessa época já havia outros trabalhos desse tipo, como aquele realizado por dom Hélder no Rio de Janeiro, de onde também vinha dom Jorge.
Tenho lido essa questão da mudança de orientação na linha da Igreja não como uma simples mudança ou conversão, mas como um desbloqueio da coerência de sua opção ética e religiosa. Chego a ficar irritado quando as pessoas falam na conversão dos bispos por achar absolutamente desonesto pensar que até ontem eles agiam contra os pobres, contra o povo, e de repente alguma coisa aconteceu na vida deles e fez com que mudassem. É nesse sentido que não concordo com a idéia de conversão, pelo menos não entre os bispos que eu conheço.
Conheço muitos bispos no Brasil. Quando assessorei uma assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fiquei muito impressionado com eles. Com exceção de dois ou três casos de bispos mais intransigentes e fechados, todos se mostraram muito abertos para discutir, conversar, mudar de opinião, apoiar os que estavam em mais dificuldades, como os bispos da Amazônia numa determinada época. Assim, não acho que tenha havido conversão mas uma mudança na visibilidade de sua ação, além de uma maior solicitação de seu empenho pessoal. Aquele bispo que ficava no palácio episcopal - que freqüentemente não era realmente um palácio -desaparece e dá lugar a um bispo que é como dom Jorge: vai para rua, para a porta das fábricas.
No Brasil, essa atitude está também relacionada ao fato de que boa parte dos bispos vêm de regiões camponesas tradicionais. Por isso, a dimensão afetiva da vida, da decência das pessoas, está muito presente neles. Os bispos estrangeiros também vem quase todos de famílias camponesas, geralmente italianas ou espanholas. Talvez essa questão possa ser explicada um pouco por esse clima sociológico da condição de origem, do recrutamento dos bispos.