Observou-se a partir de então a conseqüente mudança do perfil das ONGs: de centros de educação popular passaram a ser entidades de assessoria aos movimentos sociais, na medida da limitação de suas atuações. Fortaleciam a luta dos movimentos ao produzir conhecimento sobre suas atividades e a partir delas, além de incentivar a formulação de políticas públicas para os mais diferentes setores sociais.
Condição que atribui às ONGs uma posição cômoda em relação ao resultado do trabalho que desenvolvem, na medida em que não respondem diretamente pelos equívocos dos movimentos sociais. Em decorrência desta aparente distância, alguns setores dos movimentos sociais, em especial o ambientalista, se relacionam com as ONGs de uma maneira até mesmo pejorativa ao tratá-las como ‘entidades de assessoria’, salientando o distanciamento para com as lutas dos movimentos sociais.
Além disso, a condição de autonomia conquistada e atribuída às ONGs também as credenciou para o diálogo com outros atores sociais, a saber: o Estado e o Mercado. Desprovidas de uma origem partidária, ou mesmo ideológica pelas quais se referenciam; ressaltando princípios de conceituação elástica (democracia ou cidadania, por exemplo); sustentadas pela contribuição financeira às pesquisas e projetos que desenvolvem, as ONGs tornam-se interlocutores ideais de governos e empresas na medida em que não mais representam ameaças a estes, ao contrário dos movimentos sociais.
Essa condição, somada ao conhecimento que as ONGs possuem sobre as fontes de financiamento, faz com que se crie uma relação de dependência clientelista entre as ONGs e os setores por elas assessorados. Alois Moler, consultor de ONGs para agências de cooperação internacional, mostra como as ONGs se colocam como intermediárias entre a comunidade e a agência financiadora, cumprindo o papel que deveria surgir da mobilização da comunidade.
Na maioria das vezes, a comunidade tem condições de se mobilizar por conta própria se o esforço for direcionado para esse fim. Além disso, a prática clientelista não soluciona de fato os problemas do cliente: devolve à clientela recursos que por outra via lhe foram extraídos e utiliza estes fluxos de recursos como meio de dominação ideológica. O projeto se torna um meio para se conseguir recursos externos, não um esforço planejado de um grupo de pessoas para alcançar um objetivo e modificar determinada situação, além disso, a necessidade de escrever projetos e administrar recursos marginaliza o pobre que não sabe escrever, nem possui conhecimentos próprios para administrar - gerando dependência e perda de dinamismo.
A relação entre as partes também passa a ser desvirtuada diante do contrato estabelecido: a doação dá para os líderes intermediários um poder maior dentro de um determinado grupo; o estrangeiro deixa de ser o explorador imperialista para ser benfeitor dos pobres; as doações substituem a criatividade e o esforço próprio dos sujeitos populares, fazendo da apresentação de projetos um meio mais cômodo do que iniciar um processo de poupança; também as agências financiadoras passam a ver as ONGs como melhores informantes, prestadores de serviços e canalizadores de fundos, compondo assim a cadeia clientelista.
Fazendo o que o governo não faz, deixam de ser apenas interlocutoras do social para se tornarem seus representantes junto à opinião pública, encarnando a ação cidadã que dá conta das questões sociais. Por sua vez, o governo também passa a promover seu programa social de braços dados com as ONGs, chamando-as à responsabilidade e à cumplicidade com seu programa de ação.
Nesse sentido, configura-se um terceiro setor cúmplice das ações governamentais, que, em certa medida vai de encontro à concepção de Jean Pierre Leroy, coordenador da FASE, que propõe a existência de ONGs que possam exercer o papel deombudsman do governo junto à sociedade. É de se perguntar quais ONGs teriam base ou legitimidade para julgar um determinado governo senão as que compartilhassem de sua forma de atuação, já que não podemos negar a existência de concepções ideológicas que sustentam os programas de governo.
Portanto, conceber um terceiro setor nesses moldes contribui para esvaziar a ação política dos movimentos sociais em nome da valorização da ação cidadã. Cidadania nesses termos implica em fortalecer o Estado que está sendo gerido e construído dentro desses princípios. Essa estratégia já se mostrou equivocada do ponto de vista de uma ação radical da sociedade civil logo no início do braço governamental da Campanha da Ação da Cidadania - o CONSEA que, além de não ter emplacado em termos de políticas alternativas em segurança alimentar, teve um papel limitado dentro do Governo Itamar e foi extingüido sem maiores explicações já no início do Governo Fernando Henrique Cardoso.