carrossel

UOL

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 11)

A ONU e o trabalho escravo

ESTUDOS AVANÇADOS - Essas múltiplas situações de escravidão hoje são de domínio público. Pode-se lê-las nos jornais. Soube que, recentemente, você foi admitido a um grupo internacional cuja finalidade é a denúncia, o estudo da escravidão. De que grupo se trata?

J. S. M. - Em 1991, a Assembléia Geral das Nações Unidas criou a Comissão de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão. Já faz uns 20 anos, aproximadamente, que a ONU reconhece que existe escravidão em vários países; em alguns, a escravidão era oficial e legal, como o caso do Sudão e da Mauritânia. Porém, conforme o problema foi se agravando, em vez de ser controlado e reduzido foi se tornando cada vez maior. Por essa razão, a Assembléia Geral decidiu criar um grupo que organizaria a pauta de trabalhos do chamado Grupo de Trabalho sobre o Trabalho Escravo, um grupo que envolve embaixadores, ONGs e outros grupos.
O grupo foi criado em 1992 pela Assembléia Geral, e é constituído por cinco pessoas, uma de cada continente, nomeadas pelo secretário-geral. Fui nomeado representante das Américas em 1996. Somos especialistas, pessoas que nos seus respectivos países e continentes têm algum trabalho relevante em relação ao tema. Nós devemos nos reunir em Genebra duas vezes por ano para examinar os casos, ocorrências, denúncias e pedidos de socorro.

Entre outras coisas, temos a tarefa de viabilizar que as vítimas possam se apresentar diretamente ao órgão da ONU que trata do assunto, que é o Grupo de Trabalho, que faça suas denúncias e peça interferência, podendo, inclusive, convocar os embaixadores e exigir dos respectivos governos o cumprimento dos tratados internacionais de 1926 e 1957, assinados por quase todos os países. Ao fazê-lo, esses países renunciaram à escravidão, comprometendo-se a combatê-la.

O grupo tem uma eficácia muito limitada por causa da falta de recursos. Quando nos reunimos em abril último, tínhamos umas duas dezenas de denúncias, vindas especialmente da África e da Ásia. Pedidos de socorro, de ajuda para projetos de intervenção para libertar pessoas, para reeducar pessoas, entre outros. Dispúnha-mos apenas de US$ 12.500 e o total dos pedidos chegava a US$ 700.000, ou seja: não tínhamos absolutamente nada.

Em nosso trabalho, tem sido difícil sensibilizar as pessoas, especialmente governos, para que contribuam para o Fundo da ONU para que esta possa interferir efetivamente no trabalho educativo, no trabalho de dissuasão, e, inclusive, quando for o caso, na libertação de pessoas vitimadas pela escravização. Como temos acesso direto ao plenário da Assembléia da ONU, tanto em Nova York como em Genebra, uma parte de nosso trabalho é ir aos plenários, já que os embaixadores não vêm a nós, e sentar ao lado de cada um, conversando com eles individualmente e pedindo que se interessem pelo problema. Para se ter uma idéia da gravidade do problema, durante anos, apenas um governo do continente americano - o qual eu represento - deu uma pequena contribuição: o governo do Chile, que doou US$ 2.500, e nenhum outro. Conversando com o embaixador de Cuba, a quem fui pedir que pelo menos comparecesse a nossa reunião para tomar conhecimento da gravidade do problema, fiquei muito decepcionado. Apesar de não ser esse o caso de Cuba, está aparecendo trabalho escravo nos Estados Unidos, por exemplo. Primeiro, o embaixador cubano tentou me descartar, e depois disse que iria à reunião - uma questão de dez minutos para ouvir um relato - e não foi. A mesma coisa aconteceu com outros governos. Fui atrás do embaixador da Itália, ele me recebeu muito formalmente e disse que a Itália, no momento, estava passando por grandes dificuldades e não poderia dar uma contribuição.

As contribuições solicitadas são ridículas. O que nós esperamos para o Fundo são contribuições governamentais de US$ 1.000. Quer dizer, se os governos derem o dinheiro, teremos recursos para fazer alguma coisa. Na conversa com o embaixador italiano, quase fiquei com vontade de dar dinheiro para ele salvar o governo de seu país. Tive que dizer para ele: "Não esqueça que a Itália foi uma grande exportadora de camponeses, que foram trabalhar em condições de servidão na América, especialmente no meu país". A Itália é emblemática, e precisa entrar num processo de ajuda desse tipo. Houve um cidadão italiano que doou ao Fundo US$ 500, e o governo italiano não deu nada. É algo muito complicado.

O governo brasileiro ainda não contribuiu, apesar de ter um programa bastante interessante de combate à escravidão; aliás, um programa eficiente, que está dando certo. Falei com o secretário da embaixada e pedi que o governo brasileiro se interessasse, para dar um exemplo nessa história. Nossa situação, enfim, é muito difícil, pois temos poucas doações. Cada um de nós está se esforçando para ver se convence esses governos a fazer alguma coisa.

Dos poucos representantes diplomáticos de organizações não-governamentais que atenderam nosso pedido, a embaixatriz da Índia compareceu a uma de nossas reuniões, pela primeira vez em oito anos, e fez uma manifestação vigorosa de apoio ao nosso trabalho. O presidente da comissão também é da índia. Compareceu também um jovem representante dos Estados Unidos, ligado aos direitos humanos, que esteve na reunião por dez minutos, e ele disse: "Os governos não contribuirão, não se iludam a respeito disso. Eles criam as comissões na Assembléia Geral para se desvencilhar da pressão da opinião pública nos seus respectivos países, mas depois, de fato, não dão dinheiro, não contribuem e não asseguram a execução dos projetos. Minha sugestão a vocês é que mobilizem a sociedade civil dos diferentes países para que ela se inquiete com a imoralidade da persistência da escravidão".

Sem comentários:

Enviar um comentário