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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 20)

As Ciências Sociais no Brasil

ESTUDOS AVANÇADOS -Você fez parte do grupo que, sob a liderança de Florestan Fernandes, colocou a sociologia no centro mesmo dos estudos sociais lato sensu, desde os fins dos anos 50 e ao longo dos anos 60. Esse período foi extremamente fecundo para as Ciências Sociais no Brasil, dele nós recebemos obras fundamentais. Em parte, esta tradição foi seguida, mas em parte, provavelmente em grande parte, ela foi ou dispersada depois das aposentadorias compulsórias ou efetivamente substituída por outro tipo de estudo. Gostaríamos que você fizesse uma apreciação desse processo de conservação de temas, de preocupações, de projetos e de mudanças. Como é que você vê, atualmente, a situação da sociologia no campo dos estudos sociais, e seria possível fazer um prognóstico sobre o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil?

J. S. M. -De fato, o período que se abre com o Ato Institucional nª 5, é um período de muita perda e pouco ganho para as Ciências Sociais, em particular para a sociologia. E essa minha visão não é tradicionalista, conservadora.

Acredito que o que aconteceu com nosso grupo na USP - um dos grupos mais dinâmicos e criativos da sociologia brasileira -, foi uma perda de substância. Essa perda de substância está, sem dúvida, ligada às cassações dos professores que foram afastados, mas já se anuncia, de certa maneira, um pouco antes, quando se pode notar uma certa resistência a uma liderança intelectual como aquela do professor Florestan Fernandes, que mantinha uma acentuada preocupação com as possibilidades de transformação do Brasil numa sociedade diferente, mais justa, mais democrática e mais rica, mas dentro dos marcos da ordem, entendida no sentido de que não era preciso criar uma convulsão social para conseguir atingir certas metas sociais e políticas.

A própria circunstância da ditadura e seus efeitos na vida de vários membros do grupo, acabou levando a um desdobramento da obra de Florestan Fernandes, que se enriqueceu com um tratamento mais incisivo e dialético dos impasses históricos a que o país se transformasse numa democracia social ou num país socialista.

Essa foi a grande marca dessa sociologia, na origem uma sociologia de inspiração positivista. O melhor de sociologia que se fez no Brasil foi inspirado por essa perspectiva. Claro que a ditadura, e sobretudo a violência do AI-5, questionou a idéia do compromisso básico com uma certa idéia de ordem social, que não era uma idéia de ordem política. Em conseqüência, e sobretudo pelo fato de que houve as cassações, se criou um vazio e, na verdade, esse vazio foi preenchido por uma outra mentalidade, não apenas por outros pesquisadores. A partir daquele momento, a sociologia na USP, com exceções óbvias, tendeu para o fragmentário, tendeu a fazer diagnósticos tópicos a respeito de problemas muito desencontrados entre si, e abriu mão da possibilidade de ter um diagnóstico de conjunto, característica da sociologia do professor Florestan Fernandes.

Havia um projeto para o Brasil na sociologia de Florestan Fernandes e de seu grupo. Com essa ruptura, houve algumas conseqüências curiosas. Em primeiro lugar, a sociologia se afastou da própria sociologia. Os sociólogos - especialmente os mais jovens, os que vieram depois, os que não tinham nenhum compromisso com as tradições da Faculdade de Filosofia da USP e, aparentemente, não queriam tê-lo -tenderam muito mais a fazer uma quase-filosofia do que propriamente sociologia. Em vários trabalhos assim surgidos, há muito mais ensaísmo, quase filosófico, do que propriamente sociologia.

A tradição da sociologia do professor Florestan Fernandes sempre foi a tradição da pesquisa empírica, da sociologia indutiva, exatamente porque ele também era herdeiro dessa tradição, não a inventou. A idéia era de uma sociologia que decifrasse o Brasil; a sociologia que vem depois de 1968 tentou, basicamente, tratar dos grandes temas e dos grandes debates que a sociologia estava travando em outros países mas sem nenhum enraizamento na sociedade brasileira, sem tratar dos grandes problemas que o Brasil enfrentava, sobretudo os novos grandes problemas criados exatamente pela ditadura, pelo recrudescimento da repressão, inclusive dentro da universidade.

Abriu-se o período de uma cultura de descompromisso com os destinos do país. Não quero dizer que as preocupações desses autores não sejam relevantes, mas não acho, por exemplo, que transformar Foucault em sociólogo resolva sequer os problemas que o próprio Foucault tratou nos seus trabalhos. Foucault é um interlocutor da maior importância, mas não podemos passar para nossos alunos a falsa suposição de que Foucault seja um sociólogo substitutivo e melhor do que os verdadeiros sociólogos. Ele é um interlocutor, uma referência enriquecedora..

O mesmo se fez com outros autores, com sociólogos e filósofos sociais alemães, que entraram na nossa discussão como se fossem grandes sociólogos e definissem grandes diretrizes do pensamento sociológico Ou seja, a ruptura de 1968 é uma ruptura do compromisso do intelectual com relação à realidade em que ele vive, o que foi muito grave. Aliás, estamos vivendo as conseqüências disso agora. O governo precisa de respostas, a sociedade precisa de respostas, precisa de indicações de pistas de como atuar, e as ciências sociais não estão dando essas respostas, não estão dizendo absolutamente nada. Elas estão numa fase de especulação interpretativa e ensaística, que deverá ter sua importância, ao menos residual, reconhecida no futuro. Porém, não atende, efetivamente, às questões que estão diante de nós. Estamos reduzidos a um esteticismo sociológico de fôlego curto.

É claro que não se trata de voltar aos temas daquela época. Os temas daquela época foram os temas que a época propunha. A época hoje propõe outros temas e problemas. Mas é lamentável que não haja ninguém na sociologia brasileira, e sobretudo na sociologia de São Paulo - ninguém como grupo, como sujeito de trabalho acadêmico -, preocupado com os problemas sociais, com aquilo que o próprio Florestan Fernandes definia como problemas sociais: a desagregação, a miséria, o desencontro, a dessocialização de imensos e problemáticos grupos sociais, a favelização do mundo urbano, a deterioração das condições de vida. Estes são temas para sociólogos e antropólogos trabalharem, e eles não estão fazendo isso.

A maioria de nós está preocupada com outras coisas, não com essas questões, e elas são substantivas para a sociedade brasileira. Outras questões pendentes dizem respeito às condições da democracia no Brasil, ao que vem a ser essa democracia que está aí hoje. Quanto tempo ela pode durar? Em que condições ela vai ser expressão de uma ansiedade progressista da população brasileira?

A própria questão agrária tem sido estudada de maneira equivocada, como já foi apontado anteriormente. Ela não tem sido estudada, na universidade, como ingrediente fundamental do processo de constituição de uma sociedade nova no Brasil, mas como um problema marginal. O próprio governo trata a questão agrária dessa maneira, não como uma questão básica mas como uma questão marginal que pode ser resolvida administrativamente; que não deve ser resolvida estruturalmente.

Enfim, o quadro é de desagregação, e se complica em conseqüência do corporativismo próprio de nossas instituições acadêmicas, incorporado na própria estrutura das entidades científicas que congregam os cientistas sociais.

Olhando esse panorama, não parece haver lugar para inovação temática, apenas para reforço do existente. Não há nenhum espaço para criação e formulação de novos temas e problemas de investigação, o que deveria estar sendo feito pelos departamentos universitários, já que as instituições não o fazem. E os departamentos também não estão fazendo, porque toda pressão sobre eles, vinda da Capes, do CNPq, das instituições de pesquisa e às vezes das próprias universidades, é no sentido de definir linhas de pesquisa.

Definir linhas de pesquisa significa estabelecer um trajeto pré-determinado para aquilo que se vai fazer, o que não deixa espaço aberto para a criatividade interpretativa e investigativa, marca da sociologia numa fase em que ela era menos organizada, menos estruturada aqui no Brasil. É preciso recuperar o terreno da liberdade de criação nas ciências sociais para que se possa inovar e retomar as possibilidades de trabalhos de boa qualidade que a sociologia brasileira já teve no passado.

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