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domingo, 21 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 19)

Reforma agrária: possibilidade de ressocialização

ESTUDOS AVANÇADOS - Evidentemente, o tema da reforma agrária e a relação da questão agrária com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é algo extremamente candente e atual. Você tem pontos-de-vista muito elaborados sobre esse tema, dada sua longa familiaridade com trabalhos empíricos, sua assessoria à Comissão Pastoral da Terra; enfim, seu nome está, umbilicalmente, ligado ao problema agrário no Brasil. Gostaria que você pudesse desenvolver um de seus pontos-de-vista a respeito da reforma agrária, sobretudo a desvinculação com o que você chama agrarização do tema. Se bem entendo, você faz uma separação inicial para clarear o terreno.

J. S. M. - No Brasil, o tema da reforma agrária tem sido dominado por uma preocupação característica dos anos 50, ou seja, uma reforma agrária que resolva o problema de acomodar, no cenário social e político, grandes massas rurais da população que não conseguem se integrar no mundo urbano e moderno.

Sobretudo no Brasil, a reforma agrária tem sido tratada pelas esquerdas, mas também pela direita, como uma solução arcaica para os problemas de um país que pretende, quer e precisa se modernizar. Sempre entendi que há nisso um equívoco enorme. A reforma agrária é a condição da modernização no Brasil, não só porque desobstrui os caminhos da transformação do país num país moderno, mas também porque tem possibilidade de abrir um novo campo de atividade profissional. Desagrarizar a questão agrária é fundamental para que as atividades rurais possam ser encaradas como profissão, como qualquer profissão moderna. Isso está acontecendo em outros países.

A experiência dos kibutz,em Israel, fazendo um grande apelo a populações que não têm nenhuma origem rural, ressocializa as pessoas para uma nova perspectiva de vida ligada à natureza, ao trabalho no campo, e assim por diante; é algo que tem de ser feito no Brasil. Para um país que possui muita terra e baixa capacidade de geração de empregos, ou pelo menos capacidade insuficiente, a alternativa de reinserção de amplos contigentes da população no mundo rural - pessoas que têm uma origem ainda não muito remota no mundo rural - é uma forma de solução de problemas sociais que deveria ser considerada. A questão da reforma agrária deveria ser encaminhada por aí. Nesse sentido, o país tem condições, e tem necessidade, de fazer da reforma agrária um grande projeto de reforma social no campo.

Todos os grupos que têm lutado pela reforma agrária não estão se dando conta de que existe essa alternativa para ser incorporada nas respectivas bandeiras. Mesmo o Movimento dos Sem-Terra, que considero um movimento modernizador no campo, não encara a questão da reincorporação dos pobres da cidade no mundo rural como uma alternativa profissional tão boa como qualquer outra. Encaram apenas como uma forma de questionamento da problema da pobreza no país. É preciso questionar a pobreza, e vigorosamente. Mas, ao mesmo tempo, é preciso não fazer disso uma solução utópica do tipo "vamos resolver esse problema imediatamente porque as pessoas precisam comer". Acho que não se trata apenas da questão das pessoas poderem comer. Trata-se da questão delas terem uma inserção correta, e a melhor possível, nas atuais condições da economia e da sociedade.

Uma medida positiva recentemente implantada pelo governo foi a criação de um departamento de estudos no Ministério da Reforma Agrária. Esse departamento está colhendo subsídios para definir temas de pesquisa e de debate. Dependendo de como as coisas se encaminharem, acredito que as verdadeiras explicações sociais e políticas da reforma agrária poderão chegar à consciência dos funcionários do governo e dos altos funcionários responsáveis pela política agrária e, eventualmente, ganhar em termos de qualidade.

Como parte dessa tentativa de ter uma consciência mais abrangente do problema agrário, o Ministério convidou o sociólogo Juarez Brandão Lopes para organizar um departamento de estudos. Juarez, que foi professor na USP, está fazendo contato com a comunidade acadêmica, inclusive para estudar a viabilização de projetos de pesquisa, pedindo sugestões de temas, enfim, buscando a cooperação acadêmica, algo muito positivo.

Não sou excessivamente otimista em relação ao alcance de projetos como esse, mas acho que é necessário ampliar a informação que se tem sobre a questão agrária, sobretudo a informação que o Estado tem sobre ela. Há temas urgentes que precisam ser investigados. Onde é que estão os bloqueios da reforma agrária? Não há nenhuma informação consistente sobre o assunto.

Já existe uma certa literatura sociológica, pequena e de razoável qualidade, sobre os grupos que se opõem à reforma agrária. Mas, efetivamente, onde está o bloqueio, qual a qualidade dele, como é que ele se faz presente, por exemplo, no Congresso Nacional, nos tribunais, nas polícias, que acabam se envolvendo em esquemas de repressão contra aqueles que lutam pela reforma agrária? Esse bloqueio não está identificado e diagnosticado, e este é um tema que poderia ser investigado.

Minha tese é de que o Movimento dos Sem-Terra, ao contrário do que disse Fernando Henrique Cardoso há algum tempo, numa entrevista à Folha de S. Paulo, não representa o arcaico contra o moderno. Ao contrário, o Movimento dos Sem-Terra representa uma substancial modernização das relações sociais no campo.

Há, nos acampamentos dos sem-terra, um poderoso mecanismo de ressocialização, um mecanismo que reintegra a tradição familiar do mundo camponês na realidade econômica do mundo moderno, o que é precioso, pois há poucos países em que as lutas populares no campo se desenvolveram com essa dimensão modernizante, o que não pode ser subestimado.

Este é, portanto, um outro tema que sugiro que seja melhor estudado: o processo de ressocialização nos acampamentos e assentamentos, inclusive fazendo estudos comparativos entre assentamentos oficiais do Incra, assentamentos feitos por empresas privadas - o que aconteceu muito na região amazônica no período militar - e assentamentos espontâneos, promovidos pelo Movimento dos Sem-Terra, eventualmente com apoio da Igreja.

Acredito que esses estudos poderiam ajudar o governo a ter uma consciência menos dependente dos técnicos e dos economistas, que estão dando ó tom na questão da reforma agrária de maneira equivocada. Os elementos que têm sido apresentados prejudicam o diálogo, não ajudam na construção de um projeto para a sociedade brasileira que incorpore a questão agrária positivamente, uma questão que, se resolvida, colocará o país num caminho político e social parecido com o que aconteceu em outros lugares. Sugeriria, inclusive, que fosse feito um estudo comparativo sobre a questão agrária e suas soluções em vários países, como Estados Unidos, Brasil e Japão.

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