carrossel

UOL

sábado, 22 de dezembro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 21)

 NO PERÍODO DO REGIME MILITAR




        O Cesit - Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, anexo à cadeira de Sociologia I, do professor Florestan Fernandes (1920-1995), dirigido pelo professor Fernando Henrique Cardoso, estava em fase de ampliação do número de projetos de pesquisa. Isso foi aí pelos fins de 1962, início de 1963. Na ampliação, um dos objetivos era incorporar a educação como tema de pesquisa associado aos projetos já em andamento, sobre o empresariado, o operariado e o Estado, relativos ao desenvolvimento econômico e social. Para ampliar o número de pesquisadores, foi convidado o professor Luiz Pereira, formado em Pedagogia, e não em Ciências Sociais, que havia sido aluno de Sociologia do professor Florestan e com ele fizera mestrado em Sociologia e, depois, o doutorado, na mesma semana em que Fernando Henrique e Octavio Ianni (1926-2004) fizeram os seus doutorados. Por indicação de Florestan, Luiz Pereira era professor de sociologia na Faculdade de Filosofia de Araraquara, então um instituto isolado da Secretaria da Educação do Estado, que viria a se integrar, posteriormente, à Unesp, quando de sua criação.


          Luiz preparou um projeto de pesquisa sobre "A qualificação da mão de obra na empresa industrial" (cf. Pereira, 1963, pp. 119-124; 1971, pp. 135158), para conhecer e estudar o modo como a indústria preparava sua própria mão de obra, de certa forma o quanto a fábrica era também uma escola profissional. Eles precisavam de um auxiliar de pesquisa que fizesse o trabalho de campo: que fosse às nove indústrias de uma amostra probabilística, sorteadas numa lista das indústrias da cidade de São Paulo; que fizesse os contatos, obtivesse listas de operários, reconstituísse o processo de trabalho da empresa e fizesse as entrevistas em residências espalhadas por toda a cidade, especialmente nos bairros operários, o que se daria à noite e nos fins de semana. Eu estava no final do segundo ano do curso de Ciências Sociais noturno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e era aluno de Fernando Henrique e de Octavio Ianni. Fernando Henrique convidou-me, então, a trabalhar nessa pesquisa, com uma bolsa, creio que do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, obtida por meio do Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que funcionava na USP. Eu trabalharia junto com outros dois estudantes mais experimentados. Na verdade, eles acabaram recebendo a bolsa, mas não se envolveram na pesquisa.


        A experiência foi para mim interessante, apesar de ter deixado o emprego em que ganhava bem e que me mantinha. Luiz estava chegando do interior, contratado pela cadeira do professor Florestan, como docente, e ainda não tivera nenhum contato com os alunos da FFCL. Foi morar num apartamento da rua Caio Prado, perto da Maison Suisse, onde de vez em quando jantava e onde tivemos uma de nossas primeiras conversas. Era um leitor disciplinado, mas pouco motivado para o trabalho de campo, que ficou inteiramente a meu cargo. Além disso, era notívago, passava a noite lendo, dormia tarde e só acordava depois das onze horas da manhã. Passei a encontrar-me com ele todos os dias nesse horário para relatar o trabalho feito no dia anterior, ver suas reações, responder suas perguntas e anotar recomendações para o prosseguimento da pesquisa. Fizemos isso durante dois anos, pelo menos. Almoçávamos juntos todos os dias, "rachando" o preço do prato único dividido pelos dois.


      Por essa época, o grupo de participação e de sociabilidade de Luiz Pereira, o seu grupo de referência, como poderia definir Robert Merton, não era o da Faculdade de Filosofia; era o de seus antigos colegas e amigos de um setor da faculdade, o do curso de Pedagogia, e da área de educação, com os quais se encontrava para conversar, ir ao teatro ou ao cinema. Fui por ele convidado para um desses encontros, quando o grupo foi ao Teatro Municipal ver o Balé da União Soviética. Os interesses desse grupo não eram muito diferentes dos interesses culturais de quem circulava pelo saguão da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia, 294, do qual se distanciava apenas pela idade, alunos que haviam sido da mesma escola. Era constituído de pessoas mais maduras, maturidade acentuada pelo comum cometimento profissional à educação. Aquele era o lugar de uma rica troca de ideias e de informações sobre literatura, música, teatro e cinema, além de política, tanto entre alunos como entre alunos e professores. Conversas que eram esticadas até o restaurante de seu Osvaldo e dona Luci, no grêmio da faculdade, até o cafezinho no bar do seu Antônio, na esquina da rua Dr. Vila Nova, ou ainda o restaurante do seu Archimede e da esposa, italianos, no porão de uma das velhas casas, no mesmo lado da faculdade, entre a Dr. Vila Nova e a rua da Consolação. Até pouco tempo antes, o movimento se encerrava quando passava o último bonde no rumo da cidade, o número 14, "Vila Buarque", cerca de 10h20 da noite, coincidindo com o final da última aula. Não raro, o motorneiro parava o bonde na porta da faculdade para esperar a saída de todos os alunos. Às vezes, ia tomar um café no bar da esquina, enquanto isso.

     No saguão, os perfis dos alunos se definiam entre os que se julgavam de esquerda, ainda assim divididos entre militantes ou simpatizantes do Partidão, da Polop - Política Operária (que Octavio Ianni chegou a caracterizar como superego do PCB), os independentes e os que preferiam ser de coisa alguma. Mas a marca das classes sociais de origem estava em todos eles: os generosos e os egoístas; os que compartilhavam o que sabiam e os que escondiam o próprio saber, olhando com desprezo e em silêncio os circunstantes, principalmente os que, na relativa pobreza de seus argumentos, mostravam que vinham dos cantos escuros e desvalidos da sociedade. Havia uns poucos que economizavam exibições de conhecimento por menosprezo aos demais, eram os dotados de "ego inflado", designação que Luiz Pereira usava com frequência para se referir a eles. Do mesmo modo que se referia aos de língua solta e sem cuidado com a própria imagem como "boquirrotos". É verdade que havia os que não abriam a boca, menos para não exporem o que supostamente sabiam do que para não se exporem. Outros não abriam a boca para não distribuírem as migalhas preciosas de seu capital cultural, preservando-se para os embates mais decisivos da competição que atravessava a vida acadêmica. Ou, então, circunscrevendo a exibição de seu saber aos professores, não raro com a compreensível intenção de acumular prestígio nos ouvidos certos e, quem sabe, no fim do curso, ser convidados por um dos catedráticos para assistentes. Não obstante, no saguão organizavam-se, também, pequenos grupos de amigos para ir ao Teatro de Arena, no sábado ou no domingo, ver peças de Augusto Boal, Brecht, Moliére ou Gianfrancesco Guarnieri. Ou para ir ao pequeno e acolhedor Cine Bijou, na praça Roosevelt, ver sobretudo filmes franceses e italianos, ou ao Cine Joia, na Liberdade, ver filmes de Akira Kurosawa. Quem tinha dinheiro comprava os Cahiers du Cinéma, na Livraria Francesa, na rua Barão de Itapetininga, e eventualmente os comentava no saguão. Quem não tinha dinheiro, os lia do mesmo modo num confortável espaço de leitura que Paul Monteil mantinha num canto de sua livraria para os duros, como eu, que ali podiam ler livros e revistas, mesmo não tendo dinheiro, eventualmente comprando um livrinho da coleção "Que sais-je?". Minha primeira compra ali foi a de De la division du travail social, de Émile Durkheim. Luiz Pereira era um frequentador da livraria, de onde raramente saía sem um novo livro ou vários. Era tímido e se precavia contra demonstrações de sabedoria fora do lugar, que tinha o seu templo no saguão. Mas surpreendeu a todos um dia, no meio da arguição de uma tese de doutorado, com um comentário interpretativo competente e denso sobre La chi-noise, de Godard, filme de 1967, então muito debatido. Ali no saguão tramavam-se também aventuras, como foi a de ir em grupo ao Rio de Janeiro, de que participei, em 1962, para visitar a Exposição Soviética, um grande painel sobre o desenvolvimento científico e tecnológico daquele país, especialmente sobre o avanço de seu programa aeroespacial, sobre o qual se sabia pouco.

    As alegrias dessa cultura acessória dos cursos da Faculdade de Filosofia terminaram quando do movimento estudantil de 1968, que a pôs entre parênteses. A partir de então, excetuados os poucos que se engajaram sacrificialmente nas diferentes lutas armadas dos vários e minúsculos grupos ideológicos, a humanidade do saguão refugiou-se no privado e na cultura das conversações conspiratórias. Mesmo quem não estava envolvido em coisa alguma passou a se comportar como dono de algum suposto segredo da luta contra a ditadura, eventualmente sussurrando aqui e ali insinuações de bem informado, de estar "por dentro", para se fazer de importante, pretensos segredos confidencialíssimos quanto a um iminente acontecimento. Só muito depois do fim da ditadura, sobretudo com a publicação das listas de mortos e desaparecidos, é que se ficou sabendo quais eram, realmente, os relativamente poucos antigos alunos que se envolveram com diferentes grupos ideológicos na ação direta contra a ditadura, não raro luta armada (cf. AA.VV., 2009). É quase sempre uma surpresa constatar que determinado morto ou desaparecido era aluno da escola, sem nenhuma visibilidade na "sociedade do saguão", o que é muito significativo. Dessas listas não constam os que se envolveram, mas escaparam. Na verdade, a resistência majoritária contra o regime militar, na Faculdade de Filosofia, seguiu outros caminhos, nos programas de ensino e nas linhas de pesquisa. Ressalvadas essas exceções, as conversas cotidianas, nos recintos de circulação da faculdade, tornaram-se aborrecidamente sem graça, circunscritas às incertezas do político e às imprecisões, sem imaginação, do ideológico. Uma frase rabiscada, nos primeiros dias que se seguiram ao golpe de 1964, numa das portas internas do banheiro que ficava no topo do primeiro lanço da escada que saía do saguão, já indicava uma predisposição cultural e política na nova circunstância da ditadura:"Em terra de cego, quem tem um olho emigra".
                                                                                        


     A ruptura se confirmaria na Cidade Universitária, no nascimento de uma enjoativa cultura do exílio, marcada por ambições e ressentimentos, completamente oposta à animada cultura do saguão da rua Maria Antônia. As novas gerações de estudantes, e mesmo as de professores, nunca mais recuperaram o modo de vida da faculdade, anterior à nossa deportação para o campus do Butantã, reduzindo seus temas de convivência e conversação às miudezas insípidas próprias das incertezas criadas pela ditadura e das extensas fragmentações da comunidade acadêmica, marcadas pela desconfiança e pelo fuxico. Quando nos mudamos dos barracões, que seriam substituídos depois de nossa mudança pelos edifícios do Instituto de Psicologia, para o prédio de Filosofia e Ciências Sociais, com sua arquitetura pré-fabricada, medonha e burra, de colunas cinzentas no meio dos corredores e mesmo no meio de uma das salas de aula, de paredes brancas, alguém pichou, em vermelho, num dos corredores, esta proclamação significativa e libertadora: "Parede, eu te livro dessa brancura!". Era uma proclamação da cultura do subterrâneo, de que fala Henri Lefebvre, contra a superfície tomada pelos poderes, especialmente o da falta de imaginação do corporativismo, o da dominação burocrática e o do niilismo da falta de projeto institucional para compreensão da circunstância kafkiana que solapara o cotidiano da criação e difusão de conhecimento.


    A partir de nossa mudança da rua Maria Antônia, Luiz Pereira, que morava perto da faculdade, exacerbou o seu autoconfinamento, quebrado quase que apenas pelas saídas para as aulas na distante Cidade Universitária. Seus escritos refluíram para um formalismo seco, perdendo certo encanto poético que tiveram, como em seu artigo sobre "Mulher e trabalho" e em seu projeto sobre "A qualificação da mão de obra na empresa industrial", e que só excepcionalmente retornaria, como em seu ensaio sobre a urbanização "sociopática". Mesmo suas aulas perderam o lirismo que eventualmente tinham, como quando, para dar uma aula sobre socialização, usou a Autobiografia precoce, de Evtuchenko, jovem poeta russo dissidente (cf. Evtuchenko, 1966). Ele mergulhou numa sociabilidade redutiva e impaciente, expondo-se progressivamente a demandas alheias, imaturas e até oportunistas. O silêncio que cobriu sua obra após sua morte é a significativa indicação de quanto fora ele vitimado por esse recuo e pelo cerco que dele resultou. Não lhe sobrou um único discípulo, alguém que levasse adiante aspectos importantes de sua obra tanto na questão do desenvolvimento econômico como na questão de seus desdobramentos patológicos e anômicos, campo em que, de certo modo, foi pioneiro e criativo.

    O silêncio, aliás, cobre também a obra fundamental de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio Ianni, de Marialice Mencarini Foracchi, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, o núcleo mais denso de docentes e autores da antiga cadeira de Sociologia I, e também a obra dos docentes da antiga cadeira de Sociologia II - Fernando de Azevedo, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Ruy Coelho, Azis Simão -, sem contar Gioconda Mussolini, da cadeira de Antropologia, e Lourival Gomes Machado, Paula Beiguelman e Oliveiros da Silva Ferreira, da cadeira de Ciência Política. Uma espécie de revogação geral do pensamento de cientistas sociais originais e criativos, que nunca foram superados, decretada pela ideologização dos temas e das interpretações em nome de uma esquerda difusa e inconsistente, em nome da ignorância, do tipo "não li e sou contra", que cheguei a ouvir de alunos. Professores que em qualquer universidade se sentiriam honrados com o desafio de dar continuidade e desdobramento críticos ao legado de sua inserção institucional são os primeiros a omitir-se e a cavar o abismo que confina seus antecessores no cárcere do esquecimento.


     De um modo geral, a saída da rua Maria Antônia impôs a vários de nós um modo radicalmente diverso de relacionamento com a universidade, marcado sobretudo pela pobreza de esperança. Uma única vez deparei-me, no prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, na Cidade Universitária, com a bela surpresa de uma extemporânea manifestação do espírito da Maria Antônia. Encontrei-me, no hall, com os professores Isaac Nicolau Salum, de Linguística, e Alfredo Bosi, de Teoria Literária, entretidos em animada conversação sobre a Oração do Pai Nosso. Salum, pastor presbiteriano que, na faculdade, dava continuidade à profícua linhagem dos linguistas protestantes, que foi marca da escola, ponderava com Bosi, católico devotado e praticante, autor competente e fino, a importância de organizarem juntos um seminário exegético sobre aquela oração bíblica. Um luxo poético inimaginável na aridez do campus. Salum, aliás, é o autor da tradução literária para o português do belíssimo hino contido no poema sinfônico Finlândia, de Jan Sibelius.

       Como me esclareceu um dia o professor João Batista Borges Pereira, na Faculdade de Filosofia, foi por muito tempo historicamente forte a tradição de uma postura protestante, tanto na Linguística como nas Ciências Sociais, neste caso especialmente com Roger Bastide e Paul Arbousse-Bastide, que não eram parentes entre si, este último até mesmo professor da escola dominical de sua igreja. Em outras áreas do conhecimento da faculdade original também havia protestantes. Fora uma escolha aparentemente intencional dos fundadores da USP para, com protestantes e judeus, republicanamente evitar que a universidade pública se tornasse uma universidade católica financiada com dinheiro público, coisa que, de certa maneira, aconteceria com a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Em boa medida, a tradição crítica na Faculdade de Filosofia vem do objetivismo protestante e do distanciamento que possibilitava numa sociedade cujo senso comum era e ainda é católico.




1 comentário:

  1. Procurando uma renda extra?
    Quer ganhar R$ 400,00 por mês trabalhando uma hora por dia com seu computador? Nosso sistema de trabalho em casa é fácil e lucrativo. Voce não precisa vender nada e nem indicar pessoas.
    Venha ser nosso parceiro!
    CADASTRE-SE JÁ e obtenha mais informações e treinamentos para começar a faturar uma renda extra mensalmente, trabalhando no conforto do seu lar. Após preencher o seu cadastro você terá acesso a todas as informações passo a passo.

    http://ganhosweb.com

    ResponderEliminar