ESTUDOS AVANÇADOS -Se passarmos dessas considerações, de fato tão terríveis, para uma enésima revisão das relações entre liberalismo e escravidão, poderíamos, talvez, remontar à própria teoria segundo a qual há uma incompatibilidade entre liberalismo e escravidão, e verificar o quanto esta teoria parece ter nascido de um resíduo de admiração do marxismo pela cultura burguesa. Quer dizer, parece que o marxismo, num modelo inicial de O Capital, dá à burguesia uma função extraordinária, de libertação. Criou-se uma cultura marxista, muito coerente, que certamente dura até hoje, que continua a fazer correlações muito fortes entre burguesia liberal e libertação do indivíduo. Entretanto, todas as evidências parecem desmentir a solidez dessa relação. Em que medida haveria a possibilidade de uma releitura de Marx, relativizando e às vezes contrastando diretamente essa vinculação entre burguesia liberal e libertação do indivíduo?
J. S. M. -Justamente aí há uma grande coincidência entre Marx e Weber. Os dois têm exatamente a mesma interpretação a respeito do papel redentor do capital na libertação da pessoa, no aparecimento do sujeito livre, capaz de contratar livremente, e de como ele é positivo para o desenvolvimento do capitalismo.
Marx já havia percebido que as coisas podiam não ser assim. Mesmo em O Capital há uma referência à questão dapeonagem na América Latina, sobretudo no México, onde pessoas que não eram escravas eram, no entanto, endividadas e vendidas pela dívida a outras pessoas, e as dívidas eram herdadas pelos filhos dos trabalhadores, e assim sucessivamente.
Este tema é retomado por Rosa Luxemburgo com mais consistência. Ela estava concretamente preocupada em negar um pouco essas pressuposições iluministas que estão por trás da obra de Marx. Acredito que haja em Marx algumas pistas importantes para pensar esse assunto mas, infelizmente, O Capital é inacabado. Parece que a redação de O Capital foi interrompida exatamente no momento em que ele iria tocar mais de perto no assunto, e logo depois ele morreu. Mas há indicações para se repensar teoricamente essa questão. Marx faz pelo menos uma referência importante para se pensá-la, ao dizer expressamente, no tomo terceiro de O Capital, que o escravo era renda capitalizada.
Ao definir o escravo como renda capitalizada, exatamente como a terra também o é, Marx resgata a dimensão irracional do trabalho escravo não em termos de inviabilização da contabilidade de custos da empresa capitalista e, portanto, da reprodução ampliada do capital em termos racionais e modernos. Entretanto, ao remeter a questão do trabalho escravo à questão da renda, afirmando que este seria similar à renda fundiária porque seria também uma forma de renda antecipada no ato de compra do trabalhador, Marx nos remete ao campo teórico no qual se pode explorar o tema da escravidão, o território da renda e não o território do lucro.
Todo o equívoco dos intérpretes de Marx que aceitaram a idéia de um papel redentor do capital e do capitalismo em relação ao trabalho está baseado no fato de que eles pensam a questão do trabalho escravo no âmbito do lucro, enquanto o próprio Marx afirma ser mais conveniente pensar o problema do trabalho escravo no âmbito da renda territorial, sendo o trabalho escravo similar à renda da terra. Esta seria uma primeira pista.
Na minha opinião, uma segunda pista diz respeito à questão da composição orgânica do capital. Desenvolvo este tópico no segundo capítulo do livro Fronteira, no qual abordo expressamente a questão do trabalho escravo e, particularmente, as bases teóricas dessa escravidão recente. Marx já havia chamado a atenção para a questão da composição orgânica do capital e, sobretudo, para um aspecto importante desta composição que normalmente não é discutido: a fenomenologia da consciência do empresário quando ele organiza seu capital.
Nesse sentido, o empresário não pensa em termos de valor, no sentido marxista, mas em termos de lucro, ou seja: pensa no fenômeno do valor e não no valor stricto sensu, na expressão fenomênica do valor. Ao fazê-lo, estabelece o seguinte: em áreas extremamente atrasadas, como é o caso da Amazônia e de vários países da África e da Ásia, a taxa de lucro tem de ser "x". Ele raciocina de trás para frente, e não como o teórico faz, de frente para trás. Se a taxa de lucro tem de ser "x", o investimento de capital constante, equipamentos etc., tem de ser "y". O trabalho é remunerado com o resíduo dessa composição orgânica, ou seja, não entra contabilisticamente na composição orgânica do capital em termos das necessidades do trabalhador mas em termos da necessidades do capital, o que foi dito por Marx. Com isso, um capital de baixíssima composição orgânica, como é o caso nas remotas regiões de fronteira econômica, aparece e funciona como capital de alta composição orgânica, nos setores mais centrais e modernos da economia.
Quanto mais se desenvolve o capitalismo - e, portanto, mais importante se torna o capital constante -, para que não haja uma exacerbação quantitativa do capital variável - o trabalho - este vai sendo reduzido ao ponto de que chega um momento em que é preciso escravizar o trabalhador para que o capital continue se reproduzindo. E não é mais escravização no sentido clássico da palavra, porque não há um investimento prévio de capital no escravo. O escravo é reescravizado diariamente. Por isso, essa escravidão é muito mais repressiva, muito pior do que a escravidão negra que conhecemos, muito mais violenta e, ao mesmo tempo, ainda se trata de escravidão.
Para se repensar teoricamente essas questões a partir do próprio Marx, retirando o que de ideologicamente iluminista há nele em relação a esse tema, proponho o enfoque sobre esses dois pontos: a questão do escravo como renda e a questão da subordinação do capital variável ao conjunto da composição orgânica do capital.