No campo das relações pessoais a situação não é diferente: o antigo militante atua agora em favor de um público-alvo de beneficiados de seus projetos. A militância nas ONGs consiste em descobrir comunidades nas quais os projetos que elaboram possam ser implementados. Em geral, as ONGs nunca desenvolvem projetos em causa própria, mas em favor de terceiros aos quais ela assessora, podendo se redirecionar de acordo com o projeto em vigor.
Pretendemos evidenciar aqui esta nova relação com as causas sociais, a dos militantes que se transformaram em trabalhadores. Um trabalhador diferente, com suas características próprias. Talvez uma ‘profissão sem nome’, como teria dito Leilah Landim, mas que, pela proximidade inerente com os movimentos sociais e pela importância que ganharam na sociedade brasileira, muitas vezes se dirigem à opinião pública ocupando um espaço que se destinava a estes, ou mesmo aos partidos políticos.
Estamos diante de um ator social novo, com características próprias, originado a partir dos movimentos sociais se colocando e afirmando seu discurso junto à sociedade. A confusão causada pelas dúbias representatividades é um fenômeno a se superar na ação concreta desses dois setores.
Além disso, não se pode fazer um quadro completo das relações de trabalho e militância nas ONGs se não se tem clareza das diferenciações já marcantes entre dirigentes e trabalhadores de ONGs. Esses últimos profissionais procuram, em sua maioria, nas ONGs uma forma alternativa de se inserir no mercado de trabalho, de preferência onde possam garantir uma produção voltada mais para o social e, quando muito, preservar a participação política em movimentos afins.
Também já começa a se perceber recentemente as ONGs como opção de trabalho diante da falta de incentivo às pesquisas nas áreas de ciências sociais. Ao mesmo tempo, existe uma crise na cooperação internacional para o desenvolvimento nos países da América Latina que faz as ONGs reduzirem seus custos, gastos, programas e até mesmo profissionais.
O fato é que, ao mesmo tempo em que se autonomizam, criando seu discurso próprio de identidade e sustentação, as ONGs também afirmam uma estrutura que se assemelha à de uma espécie de “pequenas empresas que funcionam no contraponto do mercado”, onde a cooperação para o desenvolvimento se transforma em mercadoria. Seus trabalhadores, por sua vez, aqueles que sustentam os projetos, a cooperação para o desenvolvimento, e em conseqüência, a própria continuidade das ONGs, estabelecem com elas uma relação de troca de dinheiro pela força de seu trabalho, que exige, além de um conhecimento específico, uma dedicação quantificada em horas de atuação e resultados.
Sem falar que as ONGs impõem, por sua singular condição, uma norma de conduta diferenciada, pois quanto mais seus trabalhadores se rebelam, mais inviabilizam a imagem da ONG na qual trabalham junto aos órgãos financiadores e sua legitimidade junto às instituições, conseqüentemente, abalam sua própria situação dentro dela. Fazem a fidelidade para com os objetivos estratégicos das ONGs mais rígida do que os princípios da fidelidade partidária.
É preciso também adquirir, por exemplo, uma certa maleabilidade na valoração e na importância que o projeto desempenha para as ONGs e para seus beneficiários: “pedir pouco pode ser tão desmoralizante quanto pedir muito”, explica Rubem César, referindo-se à composição do orçamento na elaboração do projeto.
“Tantas são as excludências injustificáveis numa sociedade como a brasileira, que não é preciso muito gênio para inventar missões impossíveis. Basta atravessar as fronteiras sociais e propor alguma medida concreta de mediação. Em tais circunstâncias, o discernimento pragmático se torna uma virtude apaixonante”.
Diante desse quadro, onde ‘empresas sociais’ e ‘militantes profissionais’ se legitimam junto à sociedade como interlocutores e representantes do social, como fica a militância pensante?
Não podemos deixar de concordar que a forma jurídica entidade civil sem fins lucrativos, popularmente conhecida como ONG, tida como instrumento para o desenvolvimento de trabalhos comunitários é um recurso interessante para os grupos sociais, visando o início de uma captação de recursos para uma determinada atividade que pode trazer benefícios, principalmente se superados os possíveis entraves de relacionamento gerados a partir daí. Um dos principais é que os motivos que originam a ONG precisam estar claros para todos, sob a pena de desvirtuar os níveis de envolvimento militante e profissional por parte de seus membros.
Como dissemos anteriormente, as ONGs não substituem politicamente, nem mesmo falam em nome dos movimentos sociais, mas sim incorporam a representação do social para a opinião pública através da mídia e institucionalmente em alguns espaços multilaterais, tais como fóruns e conselhos a nível estadual e nacional. Passam a ser vistas pelos governo e órgãos multilaterais como interlocutores privilegiados para a implementação de projetos sociais. Desta forma, cooperar num projeto oriundo das diretrizes de um determinado governo resulta na cumplicidade com este, prática que não é conveniente para um setor que se pretende autônomo no interior da sociedade civil.
Essas colocações fazem parte do imaginário que povoa as contradições de militantes que vieram, recentemente, a trabalhar em ONGs. Sua participação política se dá a partir da aprovação de projetos e do envolvimento que têm neles a partir de um salário. São tidos como agentes de cooperação, não mais companheiros de luta defendendo uma causa comum. Isso sem contar que o compromisso com os trabalhos que desenvolvem muitas vezes inibem a participação de militantes em seus movimentos, ou, o que é pior, os vínculos institucionais mantidos pela ONGs implicam numa participação que restringe a individualidade.