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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 18)

Reforma agrária, governo e MST

ESTUDOS AVANÇADOS -Gostaríamos de ouvi-lo sobre a questão agrária e o que está acontecendo mais recentemente, inclusive em relações às iniciativas governamentais. Como é que você vê a atual situação dessa questão, e qual a perspectiva a curto e médio prazos sobre o problema dos assentamentos e do movimento dos sem-terra?

J. S. M. - Nas últimas semanas, algumas coisas importantes aconteceram em relação à questão agrária, importantes por revelarem as dificuldades de todos aqueles nela envolvidos, tanto do governo quanto dos próprios sem-terra e também da Igreja, que atua nessa área por meio da Comissão Pastoral da Terra.
Estamos vivendo um momento de impasses em relação à questão agrária. Em primeiro lugar, houve a marcha dos sem-terra, que foi louvada e acolhida, interpretada como uma manifestação criativa que ajudaria a desbloquear a questão agrária porque forçaria o Estado brasileiro a tomar medidas. Mas a verdade é que tudo indica que a marcha foi uma faca de dois gumes. Ela colocou o governo em face da realidade, da pressão dos movimento sociais por reforma agrária, mas, ao mesmo tempo, revelou a fragilidade do movimento social.

A marcha dos sem-terra, basicamente, funcionou como uma marcha de questionamento de legitimidades. Questionou a legitimidade da representação política, por meio da qual os sem-terra costumam falar no Congresso Nacional, porque foi preciso ir à Brasília, como sujeito específico de reivindicação política, sem a participação dos representantes políticos do movimento dos sem-terra. Os deputados e os senadores foram meros acólitos desse processo, o que fragilizou essa representação.

Fragilizou também a representação sindical, pois revelou as rupturas internas entre aqueles que falam a favor da reforma agrária. O confronto entre Contag e Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, ficou claro naquele momento. Mas também ficou claro que no conjunto do movimento sindical a velha ideologia de esquerda de que a classe operária vai na frente e o trabalhador rural vai atrás não se confirmou, porque as coisas se inverteram. O movimento sindical brasileiro precisou dos trabalhadores rurais para poder se expressar politicamente no maior cenário político do país, Brasília e a Praça dos Três Poderes.

Fragilizou, ainda, o próprio Movimento dos Sem-Terra, porque o Movimento questionou não apenas as ambigüidades da política agrária do governo atual mas também a legitimidade política do governo. O MST não foi dialogar com o governo, mas questioná-lo em seu conjunto. Este fato leva às interpretações que estão sendo feitas de que, no fundo, o Movimento dos Sem-Terra virou partido político. Tenho algumas dúvidas sobre esta afirmação, mas acho que é uma hipótese a ser considerada. O movimento se fragilizou porque não percebeu que todo processo tem no mínimo dois lados, e o outro lado também é capaz de tomar iniciativas. Neste caso, o "outro lado" tomou uma iniciativa importante: abriu o Palácio e mandou as pessoas entrarem, dizerem qual era a reivindicação que estavam fazendo. E os manifestantes não tinham uma reivindicação para fazer. Fizeram muita ironia, mas não apresentaram um projeto, è isso ficou bastante claro.

Depois o Planalto convidou o Movimento dos Sem-Terra para estudar a possibilidade de uma comissão conjunta para definir as diretrizes do programa agrário do governo Fernando Henrique Cardoso. O Movimento dos Sem-Terra demorou para responder e, quando respondeu, disse não. Qual o sentido de fazer uma marcha à Brasília, com uma enorme mobilização da opinião pública, se de fato não se tem proposta nenhuma?

O governo, por sua vez, aparentemente percebeu essa fragilidade e está tomando medidas que obviamente não favorecem a luta pela terra, nem a política de reforma agrária. Acredito que o decreto recente do governo, em forma de medida provisória, que define como será feita a reforma agrária, tem um destinatário certo quando afirma que não vai desapropriar terras onde haja invasões, esperando a desocupação. Esse destinatário é o Movimento dos Sem-Terra. O MST está em face da urgentíssima necessidade de rever suas metas, suas estratégias, sua prática e sua luta, o que provavelmente será feito, mas implica em reconhecer que está diante de desafios poderosos.

Por outro lado, acredito que esse mesmo decreto remove, ainda que parcialmente, os obstáculos que a Constituição de 1988 criou para a reforma agrária. Em termos legais, ele agiliza os mecanismos de desapropriação e de imissão de posse, o que pode fazer com que surjam mudanças importantes.

De qualquer modo, um problema que permanece é que a reforma agrária continua sendo feita a partir de motivações de natureza econômica, e continuo insistindo que a reforma agrária deveria ser feita por motivações de natureza social. Ou seja, num país como o Brasil, ela tem de ser feita por razões de política social e não de política econômica. A reforma agrária como expressão de política econômica é uma herança da ditadura, e é uma reivindicação dos grandes proprietários de terra. Toda e qualquer iniciativa nessa área fica dependendo da priorização da questão da produtividade, ou seja, pôr o pequeno agricultor pobre competindo por padrões de produtividade que são os do grande proprietário, altamente beneficiado por uma política de incentivos fiscais e que pode utilizar, embora nem sempre utilize, padrões tecnológicos muito desenvolvidos.

Em suma, o quadro é um quadro de impasses. Os grupos de oposição a Fernando Henrique Cardoso, em geral grupos de esquerda, como a Igreja e o PT, por exemplo, estão instrumentalizando excessivamente a questão da reforma agrária para viabilizar seu próprio antagonismo. Acredito que seja um equívoco básico. Por que? Porque a questão agrária, como já foi dito, é similar, em termos de qualidade política, à questão da escravidão no século XIX, ou seja: é uma questão suprapartidária, não podendo ser objeto exclusivo de um programa partidário. Ela tem de ser programa de todos os partidos, e não apenas de um. Se não for tratada como questão suprapartidária não se viabilizará, e o Brasil continuará com esse grave problema, comprometendo a viabilidade da transformação do país num país democrático.

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