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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 1)

JOSÉ DE SOUZA MARTINS nasceu em São Caetano do Sul (SP) em 1938. Licenciou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia) Ciências e Letras da USP (1964), onde fez o mestrado e o doutorado em Sociologia. É professor associado junto ao Departamento de Sociologia da USP. Foivisiting scholar do Center of Latin American Studies da Universidade de Cambridge (1976). Em 1992 foi eleito fellow de Trinity Hall e titular da Cátedra Simón Bolívar da mesma universidade. Em 1996, o Secretário Geral das Nações Unidas nomeou-o membro, pelas Américas, da Comissão de Curadores do Fundo Voluntário da ONU sobre Formas Contemporâneas de Escravidão.

Entre outras obras, publicou: Conde Matarazzo. O empresário e a empresa (1967), A imigração e a crise do Brasil agrário (1973), Capitalismo e tradicionalismo (1975), Sobre o modo capitalista de pensar (1978), O cativeiro da terra (1979), Expropriação e violência (1980), Os camponeses e a política no Brasil (1981), A militarização da questão agrária no Brasil (1984), Não há terra para plantar neste verão (1986; tradução italiana, 1988), A reforma agrária e os limites da democracia na Nova República (1986), Caminhada no chão da noite (1989),Subúrbio (1992), A chegada do estranho (1993), O poder do atraso (1994), Exclusão social e nova desigualdade(1997), Fronteira (1997).
O texto que aqui se publica - transcrição de entrevistas dadas ao editor de ESTUDOS AVANÇADOS, Alfredo Bosi, em 20 e 27 de maio e em 10 de junho de 1997-foi revisto pelo entrevistado.

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ESTUDOS AVANÇADOS - Qual sua formação, sua biografia intelectual, tanto dentro da universidade como fora dela?

José de Souza Martins - Venho do subúrbio de São Paulo e lá tive a oportunidade de fazer o Curso de Formação de Professores, o chamado Curso Normal, numa excelente escola pública, o Instituto de Educação "Dr. Américo Brasiliense", de Santo André (que faz 50 anos em 1997). Foi lá no "Américo Brasiliense" que tive contato indireto com a Faculdade de Filosofia da USP.

Quase todos os professores da velha escola pública de ótima qualidade daquela época eram professores concursados, e vinham da USP, em particular da Faculdade de Filosofia. Durante o curso, apesar de motivado pela idéia de ir para a roça, me senti muito atraído pela sociologia - uma das disciplinas do curso - e resolvi tentar a universidade. Passei no vestibular, na turma de 1961, e acabei me dando muito bem no curso de Ciências Sociais.

Na Faculdade fiz o bacharelado e a licenciatura em Ciências Sociais, que concluí em 1964. Em 1966, fiz o mestrado em Sociologia. E, em 1970, o doutorado em Sociologia. Em 1973, recebi uma bolsa de estudos do British Council para participar de um seminário de estudos, de quase dois meses, na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Em 1976, voltei à Inglaterra por um período de sete meses a convite do Center of Latin American Studies da Universidade de Cambridge, como Visiting Scholar. A Universidade da Flórida convidou-me para ser professor-visitante (Mellon Visiting Professor) no Amazon Research and Training Program, do Center for Latin American Studies, em Gainesville (EUA), em 1983.

Em 1992, fui distinguido com minha eleição como professor-titular da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, para o ano académico de 1993-94. Fui o terceiro brasileiro a ocupar essa Cátedra, ocupada antes por Celso Furtado e por Fernando Henrique Cardoso. E fui o terceiro sociólogo. Além de Cardoso, Pablo González Casanova também a ocupara. Essa Cátedra constitui a mais alta distinção que a Universidade de Cambridge concede a intelectuais latinoamericanos, e vem acompanhada do título de Master of Arts, que ela concede exclusivamente a quem tenha sido seu aluno. Nomes ilustres me antecederam: Octavio Paz, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Gustavo Gutiérrez, Beatriz Sarlo, além dos ja mencionados.

Como é tradição em Cambridge, ao ser anunciada minha eleição aos colleges, fui imediatamente eleito fellow de Trinity Hall. Trata-se de um dos colleges mais antigos e seguramente um dos mais acolhedores. Sir John Lyons, o famoso lingüista, recebeu o meu juramento ao pé do altar na capela medieval do College, no dia 12 de outubro de 1993. Minha posse foi solene, na presença de todos os fellows, revestidos de seus paramentos e insígnias, e dos alunos do doutorado, que depois me conduziram em procissão ao hall para o banquete de recepção. Essa honraria representa um privilégio até o fim da vida, pois me permite hospedar-me no College e ali trabalhar todas as vezes que vou a Cambridge. Tenho feito isso ao menos uma vez por ano, durante períodos variáveis, geralmente de um mês. Com isso, tenho acesso fácil aos recursos da Universidade, especialmente suas notáveis bibliotecas. Cambridge tem duas Cátedras desse tipo: além da Simón Bolivar, a Cátedra Pitt, para intelectuais norte-americanos. Meu College recebeu no passado um titular da Cátedra Pitt, também sociólogo: Talcott Parsons.

Em 1992, pouco antes de ir para Cambridge, fiz minha livre-docência no Departamento de Sociologia e dele me tornei professor-associado.

Tenho feito parte do conselho editorial de várias revistas científicas. Nessa área, o trabalho mais importante foi na revista Debate & Crítica, cujo nome, mais tarde, foi mudado para Contexto, por causa dá censura da Polícia Federal. Éramos três diretores: Jaime Pinsky, Florestan Fernandes e eu. Um ano depois, integrou-se ao grupo Tamas Szmercsányi. A revista tinha forte presença de professores da Faculdade de Filosofia da USP, especialmente de professores cassados em 1969. Ela funcionou de 1973 a 1978.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Militância e Realidade!

Ser um militante é estar inserido numa organização política, submetido a uma linha de comando e envolvido por uma atmosfera de camaradagem e cumplicidade com os membros da mesma organização. Ser um simpatizante ou um “companheiro de viagem” é estar mergulhado nessa atmosfera, obedecendo à mesma linha de comando não por um comprometimento formal como os militantes mas por hábito, por expectativa de vantagens ou conivência emocional.
Sem uma rede de militantes, simpatizantes e companheiros de viagem, não existe ação política. Com ela, a ação política, se não limitada por fatores externos consolidados historicamente – a religião e a cultura em primeiro lugar pode estender-se a todos os domínios da vida social, mesmo os mais distantes da “política” em sentido estrito, como por exemplo a pré-escola, os consultórios de aconselhamento psicológico e sexual, as artes e espetáculos, os cultos religiosos, as campanhas de caridade, até a convivência familiar. A diferença entre os partidos constitucionais normais e os partidos revolucionários é que aqueles limitam sua esfera de ação à área permitida pela cultura e pela religião, ao passo que os partidos revolucionários destroem a cultura e a religião para remoldá-las à imagem e semelhança de seus ideais políticos.
Abolindo os freios tradicionais – o que é facílimo num país de cultura superficial como o Brasil, a organização da militância revolucionária transforma todos os ramos da atividade social, todas as conversações, todos os contatos humanos, mesmo os mais aparentemente apolíticos e ingênuos, em instrumentos não-declarados de expansão do poder do partido. Sei que essa concepção é monstruosa, mas ela não é minha. É de Antonio Gramsci. Uma vez que ela seja posta em execução numa dada sociedade e aí alcance razoável sucesso, toda a existência humana nessa sociedade será afetada de hipocrisia e duplicidade, pois aí praticamente não haverá ato ou palavra, por mais inocente ou espontâneo, que não sirva, consciente ou inconscientemente, a uma dupla finalidade: aquela que seu agente individual tem em vista no seu horizonte de consciência pessoal, e aquela a que serve, volens nolens, no conjunto da estratégia de transformação política que canaliza invisivelmente os efeitos de suas ações para a confluência num resultado geral que ele seria incapaz de calcular e até de conceber.
Uma vez desencadeado esse processo, a completa degradação moral e intelectual da sociedade segue-se como um efeito inevitável, mas isso é vantajoso para o partido, pois acelera o processo de mudança revolucionária e pode ser utilizado ainda como material de propaganda contra a “sociedade degradada” por aqueles mesmos que a deterioraram, os quais assim obtêm de suas más ações o lucro indiscutível de ocupar sempre a tribuna dos acusadores enquanto as vítimas ficam no banco dos réus.
Mas os agentes condutores não saem ilesos do processo que desencadearam. No curso das transformações revolucionárias, terão de se esmerar na arte do discurso duplo, justificando seus atos perante o público geral segundo os valores correntemente admitidos, e segundo as metas partidárias para o círculo dos militantes que as conhecem e as compartilham. À medida que estas metas vão sendo alcançadas, é preciso reajustar as duas faixas do discurso ao novo padrão de equilíbrio instável resultante do arranjo momentâneo entre o “antigo” e o “novo”, isto é, entre o que o público em geral imagina que está acontecendo e o mapa de um trajeto só conhecido pela elite dirigente partidária. Esses reajustes não são só artifícios retóricos para ludibriar o povo. São revisões do caminho para reorientar os próprios dirigentes e implementar as adaptações táticas necessárias a cada momento.
Quem nunca militou num partido revolucionário mal pode imaginar a freqüência e a intensidade dessas revisões, nem as prodigiosas dificuldades que elas comportam. E só quem tem alguma idéia disso pode compreender as contradições de um governo de transição revolucionária, distinguindo as aparentes das reais. Praticamente a totalidade dos comentários políticos que circulam sobre o governo Lula refletem apenas a inabilidade de fazer essa distinção.