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domingo, 7 de outubro de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 16)

A esquerda e a Igreja Católica no Brasil

As primeiras reuniões de bispos para rediscutir a visão da Igreja foram feitas simultaneamente em três lugares: na Amazônia, no Nordeste e em São Paulo, com um grupo coordenado por dom Paulo. Estas reuniões foram realizadas por ocasião do aniversário da Declaração aos direitos humanos e produziram documentos, talvez os mais importantes já produzidos pela Igreja Católica no Brasil nesta segunda metade do século 20. Foi nesse momento que a Igreja tomou consciência e começou a denunciar que o capitalismo não era exatamente o que ele próprio anunciava. A partir daí ela decidiu se posicionar, dizendo que seu compromisso não era com o capitalismo, nunca havia sido, mas com a dignidade humana, com a sobrevivência do homem.

Esses documentos da Igreja Católica têm mais importância do que imaginamos, formando os elementos de referência crítica da Igreja em relação a sua própria experiência e ação pastoral. A Igreja se abre nesse momento a outras perspectivas. É preciso lembrar também que nessa época há muitos perseguidos políticos e religiosos que não são católicos. O fato de dom Paulo ter em São Paulo o presbiteriano Jaime Wright como um de seus assessores importantes é muito indicativo de uma abertura de mentalidade bastante relacionada ao Concilio Vaticano II, ao Papa João XXIII. A Igreja passa a mostrar muito mais tolerância e disponibilidade para conviver com o diferente, e numa escala que a esquerda não foi capaz de cultivar.

A esquerda não se tornou capaz de conviver com os grupos religiosos no Brasil, e continua sendo intolerante em relação a eles, subestimando-os e desdenhando-os. A Igreja Católica, por sua vez, foi capaz de conviver com a esquerda. Naquela época de perseguições, muita gente de esquerda perseguida foi abrigada pela Igreja, tanto na Amazônia como em São Paulo. E os descartados pelas igrejas protestantes, sobretudo pela Igreja Presbiteriana, foram abrigados pela Igreja Católica em vários lugares do Brasil. Encontrei presbiterianos trabalhando na Pastoral Social Católica, em Brasília, alguns eram até mesmo pastores. Aconteceu com eles o que aconteceu com todos que tinham uma posição mais à esquerda, mais humanista, mais ecumênica: eles foram postos para fora de suas igrejas.

A Igreja Presbiteriana depurou seus quadros, colocou efetivamente as pessoas para fora, tornando-se, informalmente, a Igreja do Estado. Pessoas como Rubem Alves e Jaime Wright, entre outras, tiveram sua permanência na Igreja inviabilizada. Muitas dessas pessoas foram absorvidas pela Igreja Católica, até mesmo pessoas de esquerda que eram materialistas, que não acreditavam em Deus, que não possuíam religião alguma. Até as pessoas que se diziam anticatólicas, que achavam que a Igreja era um instrumento de poder, foram abrigadas pela Igreja Católica e participaram ativamente de seu trabalho pastoral durante muito tempo.

Naquele momento, a Igreja sofreu uma grande transformação, em parte devido a características que ela já possuía, em parte devido ao tipo de educação que o episcopado recebia. A origem social do clero, em sua maioria vindo de regiões camponesas, também foi um fator importante. Além disso, a conjuntura favorecia essas mudanças, apontando claramente a necessidade de que alguém exercitasse a solidariedade e a generosidade numa escala não vista antes. As pessoas precisavam de abrigo, de apoio, de acolhimento e de proteção.

E neste contexto que a Igreja se ressocializa, principalmente os bispos, aqueles que sofriam as demandas mais contundentes dessa hora de sofrimento. Os bispos se ressocializaram, eles não se converteram; naquele momento, descobriram dimensões muito mais amplas da sua própria opção religiosa e da sua própria vocação. E minha tese é de que isso o Vaticano não teve e nem tem condições de mudar. A Cúria Romana, que é muito conservadora, burocrática e institucional, não conhece e, portanto, não pôde interferir nesse processo.

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