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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 8)

História e memória dos excluídos

ESTUDOS AVANÇADOS - Entre seus interesses, há uma forte inclinação para recuperar a memória de segmentos da população, de grupos, de espaços ou de tempos que normalmente não aparecem em uma história institucional, ou em uma história política, no sentido convencional da palavra. Um de seus estudos, que parece particularmente rico em implicações teóricas apesar de ser fortemente enraizado na observação, é Subúrbio, escrito sobre a memória de São Caetano. Você poderia dizer alguma coisa sobre o livro, sua gênese, se ele integra um projeto maior, e a relação entre "memória dos esquecidos", paradoxalmente, e memória do subúrbio e a história?

J. S. M. - O conjunto dos meus trabalhos é marcado por uma preocupação de natureza metodológica com aqueles que estão à margem, os quais eu costumo chamar de vítimas, aquelas pessoas que não estão no centro da percepção dos acontecimentos dominantes, que aparentemente não estão envolvidas neles embora de fato estejam, pessoas que normalmente não são consideradas como informantes validos do acontecer histórico, testemunhas dos acontecimentos históricos que possam merecer uma atenção especial por parte dos pesquisadores. Essa preocupação é própria do grupo de sociologia da USP. Vários dos estudos do grupo de Florestan Fernandes foram feitos com quem estava à margem: o negro, o jovem, enfim, populações que normalmente não merecem atenção de um pesquisador convencional, a menos que se tornem um problema social.

Minha preocupação com o subúrbio está relacionada ao fato de que eu acreditava ser importante e necessário fazer um recorte em um espaço muito rico de experiências históricas, apesar de irrelevante do ponto-de-vista da consciência dominante, inclusive da consciência dominante dos intelectuais. Achava importante observar como o processo histórico se dá em um determinado espaço, historicamente irrelevante. Saint-Hilaire teve uma curiosidade parecida quando passava pelo Vale do Paraíba, na época da Independência: ele queria saber como é que as pessoas daquela região estavam vendo a Independência do país, que havia acabado de ser proclamada. Aparentemente, as pessoas não estavam vendo nada, porque a Independência não havia sido feita nem por elas e nem para elas.

Queria trabalhar com essa população tomando como referência um longo período de tempo num mesmo espaço. Não queria fazer uma colagem, entre espaços, que fosse artificial. Dessa forma, nasceu um projeto, ainda em execução, de estudar o subúrbio. Comecei pelo segundo volume, o qual eu tinha possibilidade de escrever mais imediatamente. Mas há também um primeiro e um terceiro volumes, parcialmente escritos.

A idéia é ver como a história atravessa a vida de pessoas bem concretas. Pessoas como eu, como as pessoas que conheci quando trabalhava na fábrica. O que é história para essas pessoas? Evidentemente, há neste ponto uma insurgência contra uma tese, muito cara a certos grupos de esquerda, de que o povo faz sua própria história mas não sabe que a está fazendo, e que, portanto, alguém tem de tomar as decisões a respeito do processo histórico em nome dele. Minha idéia era verificar o quanto o povo é, de fato, omisso em relação ao processo histórico, o quanto o processo histórico é abrangente para essa massa de população condenada ao trabalho, a viver a rotina da vida cotidiana, mas que os teóricos baniram do fazer História.

Essa preocupação nasceu, evidentemente, de uma experiência pessoal, como muitas vezes acontece em Ciências Sociais. Como já falei no início, nasci no subúrbio, cresci dentro de uma fábrica, tornei-me adulto dentro de uma fábrica. Para mim, portanto, a classe operária não é uma ficção teórica. A classe operária é um povo real, vivo, com necessidades, paixões, sonhos, erros e acertos.

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