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sábado, 4 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 2)

Vida universitária

No tempo do curso de graduação na Universidade, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Fui aluno de curso noturno. Mesmo assim, foi uma experiência interessante, um deslumbramento, porque eu vinha da periferia, da fábrica, de uma família pobre, da escola pública que estava começando a entrar em crise.

Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni haviam estado na escola em que eu estudava na época da Campanha da Escola Pública. Foi a época do grande debate sobre o assunto. Desse modo, quando entrei na Universidade, em 1961, foi uma descoberta fascinante a de reencontrá-los na sala de aula. Fui aluno de Fernando Henrique logo no primeiro ano e, depois, de Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Paula Beiguelman, Marialice Mencarini Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Gioconda Mussolini. Estudei e tive contato com o pessoal da origem, os herdeiros do primeiro momento da Faculdade de Filosofia da USP.
Entrei na Universidade muito motivado pela idéia do compromisso social que ela propunha e realizava. Havia um projeto para o Brasil, que vinha desde sua fundação. No caso da sociologia, esse projeto ganhou fisionomia própria e sintética no projeto de pesquisa de Florestan Fernandes que teve o título de Economia e sociedade no Brasil (Analise sociológica do subdesenvolvimento), escrito com a colaboração de seus vários assistentes. No meu modo de ver, Fernando Henrique Cardoso deu dimensionamento político a idéias fundamentais desse projeto em seu governo. Já havia um projeto social na cadeira de Sociologia I: a preocupação com a escola pública gratuita, a preocupação com a modernização das relações sociais no Brasil, a modernização do empresariado, do Estado, da classe operária, a extensão dos direitos sociais a todas as pessoas. Dessa forma, para mim foi um fascínio descobrir que o mundo do qual eu vinha era também objeto de inquietação, de preocupação e de propostas por parte da Universidade, em geral tida como desvinculada, desenraizada e desinteressada em relação a essa realidade.

ESTUDOS AVANÇADOS -Nesse período da universidade você fez algum tipo de trabalho prático, algum trabalho de campo que o despertou para os estudos que viria a fazer depois, particularmente ligados à sociologia rural?

J. S. M. - Como era aluno de curso noturno, a chance de participar em qualquer projeto na Faculdade era muito pequena, praticamente nenhuma, pois eu tinha que trabalhar para sobreviver e estudar. Não dispunha, portanto, de tempo e liberdade para me envolver em algum projeto de pesquisa da escola. Quando estava terminando o 2° ano do curso, Fernando Henrique Cardoso me procurou. Era a época em que ele estava ampliando as equipes do antigo Cesit (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho), que Carvalho Pinto havia criado na cadeira de Florestan Fernandes, Sociologia I. Naquele momento, era o único núcleo que oferecia oportunidades de trabalho em projetos de pesquisa na área de Ciências Sociais.

Fernando Henrique me procurou, sabia que eu continuava morando no subúrbio, trabalhando o dia inteiro, indo e voltando, e perguntou se não me interessaria por uma bolsa de estudos para trabalhar no projeto de pesquisa de Luiz Pereira, que estava vindo de Araraquara para São Paulo para desenvolver uma pesquisa sobre qualificação da mão-de-obra operária. Dessa pesquisa resultaria o livro Trabalho e desenvolvimento no Brasil.

Luiz Pereira precisava de um auxiliar de pesquisa, uma pessoa que fizesse as entrevistas, organizasse o trabalho para ele. Aceitei, e para mim foi um ônus. Naquela época, trabalhava na Nestle, no setor de pesquisa de mercado, e ganhava um salário bastante razoável. Não era um grande salário, mas me mantinha. Eu era "arrimo de família" e a bolsa representava um quinto do que eu ganhava. Era uma verba conseguida por meio de bolsas que a Cadeira de Sociologia I e o Cesit, do qual Fernando Henrique era o diretor, recebiam de instituições diversas, inclusive internacionais.

Pesquisa e participação

Aceitei porque era a única forma de me dedicar integralmente à vida escolar e ao trabalho intelectual. Eu queria essa oportunidade, e deixei a Nestlé para ir trabalhar com Luiz Pereira. Curiosamente, a pesquisa era sobre operários, não tinha nenhuma relação com o mundo rural. A chamada realidade rural não era objeto de interesse específico na cadeira de Florestan Fernandes. Havia duas cadeiras de sociologia e entre elas uma espécie de divisão de trabalho, da seguinte forma: operários, indústria, empresários e Estado ficavam na cadeira de Sociologia I; questões rurais ficavam na Sociologia II, onde estava Maria Isaura Pereira de Queiroz, embora Azis Simão estudasse a história do movimento operário.

Não fui aluno de Maria Isaura, pois ela não estava no Brasil na época em que, na seqüência do curso, eu poderia ter assistido a suas aulas. Em todo caso, foi fácil me engajar no projeto de Luiz Pereira sobre qualificação de mão-de-obra. Fui operário desde criança, comecei a trabalhar com 11 anos de idade. Conhecia os bairros operários de São Paulo, me movia com extrema facilidade tanto dentro das fábricas quanto na conversação com a população operária. Essa foi uma pesquisa enorme que acabei fazendo sozinho; o próprio Luiz Pereira pouco se envolveu na execução do projeto. No começo, havia outros participantes na pesquisa, mas eles acabaram se marginalizando por desinteresse pelo tema e, sobretudo, pela pouca disposição de ir todas as noites aos bairros operários da periferia fazer as entrevistas. Mas, recebiam o dinheiro da bolsa todos os meses. Portanto, trabalhei por mim e pelos demais. De certo modo, Luiz Pereira acabou reconhecendo a minha dedicação numa nota de rodapé de seu livro. Apesar das facilidades que tinha para lidar com o assunto, esse trabalho foi de execução difícil. Quase sempre era necessário ir a bairros distantes e ainda andar um bocado depois do ponto de ônibus. Lembro-me de que, num dos casos, cheguei no começo da noite na casa do operário que ia entrevistar. A entrevista terminou mais de dez horas da noite. Aí ele me disse que, naquele horário só havia ônibus num ponto do outro lado do imenso Cemitério da Vila Formosa, sem muros e sem iluminação, que era necessário atravessar por dentro, pois era o único caminho. Aquela noite foi um sufoco para chegar ao Parque Dom Pedro e, depois, a São Caetano onde eu ainda morava.
Enfim, os outros não se adaptaram e acabei fazendo sozinho a pesquisa para o Luiz Pereira. O próprio Luiz não tinha muita mobilidade; havia sido professor primário mas não sabia se movimentar nessa área da indústria. Fiz os contatos nas fábricas, os levantamentos dos processos de trabalho, as listagens de operários, o que foi ótimo para mim. O que os outros achavam ruim foi para mim um benefício, porque revivi as coisas que conhecia bem e, ao mesmo tempo, na perspectiva do trabalho sociológico. Além disso, diariamente me encontrava com o Luiz Pereira, antes das aulas da tarde, para informar-lhe sobre o trabalho da véspera. Era uma boa oportunidade de ouvir comentários e aprender com ele um pouco do muito que sabia, sobretudo num momento em que ele estava se submetendo a uma ampla revisão de formação. Almoçávamos juntos num restaurante italiano que havia num casarão antigo na rua da Consolação, "Tarantella" se não me engano. Luiz era muito pão-duro. Pedíamos um prato para dois e dividíamos a despesa, o que consumia boa parte de minha modesta bolsa.

Dediquei-me basicamente a esse projeto. Quando o trabalho de Luiz Pereira terminou, houve uma seleção das pessoas que haviam participado das várias equipes de pesquisa do projeto de Fernando Henrique, do qual o de Luiz Pereira fazia parte. Alguns ficaram, outros não. Fui um dos escolhidos para ficar e precisei apresentar um projeto para fazer mestrado, que, hoje, equivale à especialização. Apresentei o projeto e escolhi Octavio Ianni como orientador.

Meu projeto era sobre modernização no campo e, obviamente, Ianni era a pessoa que estava mais próxima disso. Mas a escolha desse tema foi um pouco problemática no grupo. Em 1964, Fernando Henrique havia saído do Brasil, pois estava sendo procurado pela polícia política. Depois dele, Luiz Pereira assumiu a direção do Cesit, seguido por Leôncio Martins Rodrigues. Este último ficou bastante incomodado com algumas coisas que encontrou, porque queria um Cesit de sociologia industrial e do trabalho, como era, aliás, o projeto original. Ora, eu havia sido contratado pelo Cesit e meu projeto não tinha nenhuma relação com trabalho urbano. Leôncio criou um problema, falou com Florestan Fernandes. Florestan me chamou em sua casa; enquanto fazia a barba, às 7h da manhã, me disse: "Você tem de decidir o que quer da sua vida, se quer estudar operário ou trabalhador rural".

Respondi ao professor Florestan: "Sempre quis estudar trabalhador rural. Fui estudar operário porque foi a oportunidade que vocês me ofereceram, mas nunca escondi que estava interessado em fazer pesquisas sobre populações camponesas". No fim, nos acertamos. Acabei sendo transferido para a cadeira de Sociologia I, um pouco antes da aposentadoria compulsória de Florestan Fernandes, e continuei meu trabalho. Mas tive várias dificuldades por causa dessa opção, que não estava na opção central da Sociologia I. Fui contra a maré do grupo e parece que estou nela até hoje.

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