Vida privada e vida cotidiana: diferenciações
ESTUDOS AVANÇADOS - Voltemos à distinção que você faz entre história da vida privada e sociologia do cotidiano. Gostaria que ela pudesse ser amplificada, porque há um pressuposto de que uma coisa implica na outra. Você poderia formalizar, de outra maneira, essas relações? Não seria válida uma história da vida privada?

Os historiadores trabalham com a idéia de vida cotidiana enquanto rotina diária. Mas a vida cotidiana, a cotidianidade no sentido sociológico, não é apenas isso, e nem é fundamentalmente isso. Tomo como referência o famoso texto de Philippe Ariès no primeiro volume da História da Vida Privada, que desencadeia a preocupação com a história da vida privada. Não temos em todas as classes sociais nem em todas as sociedades aquelas características sociológicas da organização da família que levam ao aparecimento de um estilo de vida que possa ser chamado de vida privada.
Além disso, a vida cotidiana, sem dúvida, passa pela rotina, mas não necessariamente pelos ambientes íntimos da casa. Ao contrário, se as preocupações de Aries forem levadas ao extremo, desdobrando-se no trabalho de alguns seguidores, o quarto, por exemplo, lugar da intimidade, é o lugar menos cotidiano da vida moderna. Ali não há nada de cotidiano. O quarto é lugar do que? O prazer, o desejo, a alegria, todos eles realidades anticotidianas por excelência.
A vida cotidiana é amarga, reprodutiva, mecânica, sem rupturas. Ela tende à instrumentalização da pessoa. Além disso, a vida cotidiana passa pela esfera do trabalho, do qual não se pode falar como vida privada a menos que seja reduzido à idéia de contrato. A vida cotidiana está na fábrica, no trabalho, na rua, na casa, mas não estáinteiramente na casa, na rua, no trabalho, nos lugares onde a contradição se faz mais viva e o desafio à transgressão se torna mais significativo. A vida cotidiana se quebra na transgressão. A vida cotidiana se quebra na revolução. A vida cotidiana se quebra no rompimento daquilo que é propriamente rotineiro. Onde existe desejo e alegria não há vida cotidiana no sentido sociológico com que é possível trabalhar essa questão.
Vejo um enorme desencontro entre vida cotidiana e vida privada. É necessário separar as duas coisas. Na verdade, a vida cotidiana pensada a partir da cotidianidade - numa era, como esta, dominada pela vida cotidiana - nega a vida privada. É exatamente o oposto da vida privada no sentido de que a vida privada implica no reconhecimento do indivíduo, da individualidade, dos direitos pessoais, do cidadão. A vida cotidiana é a negação de absolutamente tudo isso. Ela homogeneiza, manipula, coisifica, e assim por diante.
Sem comentários:
Enviar um comentário