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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 5)

Leis trabalhistas e populismo

ESTUDOS AVANÇADOS - O caráter antioligárquico da revolução de 30 foi, até certo ponto, favorável a um início de proteção do trabalhador em face do capitalismo selvagem, primeiro o trabalhador urbano e, muito mais tarde, o rural. As recentes tendências neoliberais não estariam desestruturando o que se começou a arquitetar a partir dos anos 30? Como explicar que as esquerdas brasileiras, independentes e heterodoxas na década de 80, tiveram de, nos anos 90, voltar às propostas trabalhistas que há muito tempo estigmatizavam como "populistas"? Você tem sido severo para com esse abuso do uso do termo populismo, que lhe parece infiltração udenista oligárquica no pensamento de esquerda, sobretudo nos anos 70. Por que esse termo lhe parece infeliz como julgamento político?

J. S. M. -Acredito que haja um equívoco sério no antigetulismo das esquerdas, e na crítica ao populismo de origem getulista. Venho de uma família operária que foi amplamente protegida, nos limites estreitos dessa proteção, pelos direitos trabalhistas que Getúlio Vargas reconheceu e impôs já no Estado Novo. Para mim essa não é uma questão teórica ou doutrinária, ou não é apenas isso.

Pode-se chamar a isso de populismo, não tenho nada contra a palavra populista. Tenho é contra a idéia de condenar o populismo e adotar práticas populistas, o que me incomoda profundamente. O populismo getulista, não o populismo de Ademar ou Jânio, teve um importante sentido social, como meio de conquista de direitos sociais. Foi seguramente o meio de incorporar ao processo histórico a grande massa operária do país. Muita gente diz que se não fosse o populismo de Getúlio os trabalhadores teriam se tornado socialistas ou anarquistas. Quem diz isso comete o equívoco de extrapolar condensações da historia operária brasileira que destacaram as orientações de esquerda de grupos minoritários do operariado. Um grande defeito dessa historiografia é o de não examinar objetivamente a diversidade da classe operária entre o fim da escravidão e a Revolução de 30. Sobretudo porque a pesquisa de seus historiadores limitou-se aos arquivos de militantes e grupos de esquerda. Quando se examina outros documentos, como os das missões religiosas cujos arquivos estão no exterior, ou se recorre à tradição oral nos bairros operários, então a história que vem para fora é completamente outra. Os socialistas e anarquistas tinham uma extração social bem definida; não raro vinham das profissões artesanais, as mais atingidas pela industrialização. A grande massa operária era indiferente às polarizações da política. E a partir dos anos 20, nos bairros operários de maior concentração de imigrantes italianos, como o Brás, a Moóca, São Caetano, Santo André, Lapa, havia núcleos organizados do Fascio. Além disso, em 1930, a greve de 1917 - o momento mais revolucionário da história operária de São Paulo - estava bem longe. Sem contar que a cidade passara pela dramática experiência da Revolução de 1924, com severos bombardeios nos bairros operários, sem que o operariado tenha feito pouco mais do que saquear fábricas e depósitos de mercadorias.

Não podemos esquecer que a Revolução de 30, apesar de antioligárquica, foi composta com as oligarquias. O grande acordo político que Getúlio Vargas estabeleceu com as oligarquias foi no sentido de modernizar as relações de trabalho na cidade sem mexer nas relações de trabalho no campo, o que fez com que relações arcaicas persistissem durante um tempo larguíssimo. Não cometeria a ingenuidade de dizer que isso ocorreu porque Getúlio foi oportunista; de fato, ele não tinha condições de fazer outra coisa. Nos primeiros meses do Governo Provisório, foram feitas prisões de coronéis políticos do sertão, especialmente no Nordeste. Depois, a Revolução descobriu que não poderia governar o país sem a intermediação desses coronéis sertanejos. Nesse momento inaugura-se uma política de composição que teve seus momentos fortes nos governos de Getúlio Vargas e no governo de Juscelino Kubistchek. E tem um curioso desdobramento no governo de Fernando Henrique Cardoso, que precisou se compor com as oligarquias para desencadear a modernização do Estado, para transformar o Estado num Estado antioligárquico. Algo que numa escala mais modesta Juscelino também tentara.

A Coluna, Prestes se defrontou com esse problema, o de uma população rural que estava alheia, efetivamente excluída de qualquer processo de decisão. O que se fez foi uma composição para viabilizar um Estado iluminista e modernizador. Nesse sentido, o governo atual é a continuação dessa proposta, uma proposta de composição com as oligarquias como forma de viabilizar alguns atos de modernização do Estado. Ou seja, trata-se de continuar fazendo composições para avançar lentamente no processo de modernização do Estado, um Estado efetivamente oligárquico.

As concessões foram obtidas por meio de negociações, de grandes renúncias por parte da massa da população, dos pobres. Atualmente, a CUT está tentando entender esse processo, tentando perceber que mais do que o confronto, numa circunstância como esta, é importante a negociação. Ou seja, a mesma lógica está se estendendo até a classe trabalhadora.

Quando falo da concepção de populismo, costumo dizer o seguinte: no PT, quem usa a concepção de populismo o faz numa perspectiva udenista, ou seja, é a crítica burguesa ao populismo. Mas o populismo representou efetivamente um avanço para a massa trabalhadora, o máximo de avanço possível naquelas circunstâncias. Considerado nessa perspectiva, o populismo getulista não foi um instrumento de manipulação da classe operária contra os interesses da classe operária.

Muitos tem dificuldades para distinguir em Getúlio Vargas várias e diferentes pessoas, dependendo do momento histórico. O que fez dele um estadista foi a competência para personificar plenamente, e corajosamente, esses diferentes momentos, no limite, até a morte. O Dr. Getúlio da Revolução de 30 é um; o Dr. Getúlio do golpe de 1937 é outro; o Dr. Getúlio de 1954, do apelo à revolução e da decisão pelo sacrifício é completamente outro. No entanto, Getúlio Vargas é mesmo essa diversidade, no fundo a diversidade do país, os desencontros de sua história nem sempre lógica. Ele é demonizado por causa do Estado Novo, do Estado repressivo, da tortura - que, evidentemente, atingiu também a classe trabalhadora -, de tudo

aquilo que foi característico da ditadura getulista, e é bom que assinalemos esse momento negativo e trágico da história do país. Mas é importante ter presente que a perspectiva da recusa em reconhecer os aspectos positivos dos governos Vargas não é necessariamente uma perspectiva operária. Ela ainda é a perspectiva de quem perdeu a Revolução de 1932, e a perspectiva que depois resultou na formação da UDN, no golpe de Lacerda contra Getúlio Vargas, levando Getúlio ao suicídio. Quando o Partido dos Trabalhadores faz a crítica e a recusa de Vargas, faz a crítica udenista de Getúlio, a crítica burguesa e imperialista. É significativo que o petismo tenha nascido e florescido na região do ABC uma das mais densas regiões getulistas do país. Muitos trabalhadores chegaram ao PT por meio da herança do populismo getulista.

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