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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Entrevista com José de Souza Martins(parte 3)

Trabalhadores no campo

Fiz minha pesquisa sozinho. Possuía uma certa experiência de trabalho de campo, que desenvolvi quando estive na Nestlé, onde trabalhava no setor de pesquisa de mercado. Não era exatamente a mesma coisa, mas alguns procedimentos são muito parecidos. Fiz uma pesquisa exploratória e comparativa, em 1965, em três regiões do Estado de São Paulo: Alta Sorocabana, Baixa Mogiana e Alto Paraíba.
Foi no campo que fiz algumas observações que depois marcariam muito meu trabalho: o fato de que ser caipira, e vivenciar a cultura caipira, não estava em conflito com a modernização tecnológica e o desenvolvimento capitalista, suposição comum nos estudos sobre o campesinato latinoamericano. Por meio desse estudo comparativo de áreas com diferentes níveis de modernização, ficou visível, por exemplo, que os caipiras do Alto Paraíba - autenticamente caipiras no sentido de Antonio Candido, de "membros e participantes de uma cultura caipira" - não eram avessos à modernização nem estavam em conflito com ela, nem impediam o desenvolvimento capitalista. Poderia haver modernização e eles continuarem caipiras, continuarem vinculados à tradição do bairro rural, da família camponesa de tipo tradicional, da cultura rústica. Uma coisa não caminhava necessariamente no sentido de destruir, de imediato, a outra. É claro que haveria uma interação que, reciprocamente, teria conseqüências, mas não da forma como se dizia naquela época.

Minhas preocupações com este tema não foram, evidentemente, tiradas do "bolso do colete". Tudo tinha muita relação com as próprias características e orientações intelectuais do grupo de Florestan Fernandes naquela época. Havia o projeto Economia e sociedade, de 1962, que era referência dos projetos desenvolvidos na cadeira de Sociologia I. O centro das preocupações desse projeto era a questão da resistência às mudanças, um tema muito forte em sua sociologia quando tratava das dificuldades para transformar o país em um país democrático, moderno. Essas questões vinham também das preocupações de Fernando de Azevedo, da velha tradição da Faculdade de Filosofia.

Em 1968, Florestan publicou Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, para mim um de seus trabalhos mais importantes. De certo modo, é a contribuição da "escola sociológica de São Paulo" ao debate sobre feudalismo e capitalismo na América Latina, que ganhara uma exagerada importância em certos meios intelectuais. As úteis provocações de André Gunder Frank, negando a existência de um feudalismo latinoamericano e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma tese de certo modo simplista e mecanicista sobre o desenvolvimento capitalista na região, sugeriam a conveniência de uma ampla retomada e revisão de idéias e interpretações, revisão que o grupo de São Paulo já estava fazendo, muito antes de que Frank chegasse à cena. Na verdade, desde os anos 50, a sociologia brasileira estava debatendo o problema do atraso em termos de bloqueios e obstáculos ao desenvolvimento econômico e social. O grupo da USP incorporara o problema em vários de seus projetos - no estudo da formação do empresariado industrial, da classe operária, do Estado. Numa perspectiva, portanto, muito mais rica do que a adotada por Gunder Frank, que a partir de um artigo publicado na Revista Brasiliense, polemizava com os marxistas vulgares a respeito do padrão estrutural do desenvolvimento latinoamericano. Frank chegava tardiamente a uma discussão que já estava produzindo trabalhos de grande consistência na Faculdade de Filosofia, em grande parte mediante a incorporação crítica do que se poderia chamar de uma sociologia marxista a uma visão sociológica abrangente e, de certo modo, ecumênica dos impasses históricos. A diferença de qualidade do trabalho do grupo de São Paulo estava sobretudo na grande atenção dada à questão do método e nas contribuições originais que daí surgiram para o uso da dialética na sociologia. Em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Florestan mostra que o atraso e as relações atrasadas constituem uma necessidade do capital e do desenvolvimento capitalista.

Já em 1965 eu desenvolvera minha pesquisa comparativa sobre a modernização e os obstáculos à modernização no campo, tomando como referência três regiões paulistas em que as condições da modernização agrária eram substancialmente diferentes entre si. A surpresa da pesquisa foi a constatação de que na região mais caracteristicamente tradicionalista e caipira, o Alto Paraíba, o tradicionalismo era justamente um ingrediente essencial e uma condição do padrão altamente moderno, capitalista e eficiente da agropecuária regional, especialmente no Médio Paraíba, que ganhava corpo numa moderníssima cooperativa regional de leite e seus derivados. O tradicionalismo era, naquelas condições, e certamente não seria em outras, um dos meios da acumulação capitalista. Não havia, portanto, uma incompatibilidade necessária entre capitalismo e tradicionalismo. Entreguei ao professor Florestan dois pequenos estudos preliminares com os resultados da pesquisa de 1965, um deles um relatório para a Fapesp. O professor Florestan achou que mereciam publicação e enviou-os para aRevista do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, e para a revista América Latina, do Centro Latinoamericano de Pesquisas em Ciências Sociais, do Rio de Janeiro, nas quais foram publicados nos primeiros meses de 1969. Por ter usado numa passagem de um deles a palavra "função" para me referir à relação do tradicionalismo com a acumulação, logo diferentes autores começaram a falar em "funcionalidade da agricultura atrasada", uma definição imprópria e imprecisa. Mas, essa constatação foi a base de referência da chamada crítica da razão dualista, que, trabalhada por outros autores, fez famas e prestígios. Foi, também, base de estudos sobre o lugar da pequena produção agrícola no desenvolvimento capitalista. De fato, a idéia reaparece quase que literalmente, embora curiosamente sem citação de fonte, em trabalhos que depois se tornaram muito conhecidos e citados, publicados somente três anos mais tarde, em 1972 e depois.

No começo da década de 70, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco estavam fazendo pesquisas e estudos para, no fundo, determinar o padrão do desenvolvimento histórico e capitalista da sociedade brasileira. Tratava-se de descobrir e trabalhar as nossas singularidades nas características universais do capitalismo e, ao mesmo tempo, investigar suas tendências e possibilidades. Creio que quase tudo que fizeram nesse período está profundamente marcado por essas preocupações. Minha primeira pesquisa, e outras que fiz depois, partia dessas orientações e das contribuições teóricas c interpretativas consistentes que vinham desses trabalhos e lhes dava continuidade. Km particular, enfatizo a importância dessa marca da "escola sociológica de São Paulo" que foi a de tomar como referência metodológica da pesquisa científica não necessariamente o que está no centro do processo histórico, mas aquilo que está num plano secundário ou marginal, uma mediação. Mesmo quando se tratou de estudar a burguesia (e o empresariado), Fernando Henrique não foi estudá-la em seu apogeu e em sua dominância, mas começou por estudá-la em sua origem, nas contradições do escravismo, num momento de impasses históricos e de incertezas, um momento de gênese e de definições estruturais. O meu trabalho procurava seguir esse padrão. Fui estudar o pólo atrasado do desenvolvimento capitalista, tendo como referência, porém, os resultados sociais mais elaborados desse desenvolvimento. Não se tratava de retomar polarizações e dualismos, como ocorrera com o estudo da Jacques Lambert sobre Os Dois Brasis, nos anos 50. Tratava-se de reconhecer no atrasado, no anômalo, no marginal a mediação que oferece a compreensão mais rica do processo histórico e também indica o lugar histórico de bloqueios e resistências ao desenvolvimento social.

Crítica ao dualismo

Tratava-se, portanto, da crítica do dualismo e ela, no grupo de Florestan Fernandes, foi esboçada e ganhou corpo em trabalhos dele e dos pesquisadores a sua volta. Foi a primeira recusa de uma tipificação que ganhava sua formulação mais elaborada em polarizações de tipo weberiano, um Weber empobrecido e simplificado. No mais das vezes, o dualismo dos anos 50 e 60 combinava a tipologia weberiana com as formulações estruturais de Parsons e assumia a forma de um modelo sociológico weberianizado nas interpretações de Gino Germani. Esse questionamento das grandes tipologias do desenvolvimento estava sendo feito também por Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.

Quando eu era aluno do curso de graduação em Ciências Sociais, Fernando Henrique propusera que lêssemos Lukács. O livro História e Consciência de Classe acabara de ser publicado em francês, e nós lemos essa edição. Lukács, apesar de marxista, sofrerá algumas influências de Weber na concepção de consciência possível, de consciência adequada, baseada na categoria de possibilidade objetiva de Max Weber.

Ainda quando eu era aluno do curso de graduação, os cursos ministrados por Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Mencarini Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco, para ficar só no grupo da Sociologia I, expressavam o caloroso debate intelectual que parecia ocorrer no chamado seminário d'O Capital, que organizaram e de que faziam parte. A leitura desse livro de Lukács nos punha diante de um marxismo aberto a interpretações sociológicas de extração diversa, uma tentativa inteligente, embora discutível, de lidar com os problemas da consciência de classe. Menos pela orientação interpretativa de Lukács e mais pela centralidade da problemática da consciência no processo histórico, algo oposto aos determinismos estruturais do marxismo vulgar. De algum modo, as complexidades do método dialético compareciam a um debate que era de fundo metodológico.

A partir do início dos anos 60, e da politização mais intensa do debate acadêmico, com a participação de uma intelectualidade universitária de esquerda, à qual de algum modo pertenciam os professores mencionados, houve necessidade de maior precisão e rigor quanto à relação entre sociologia e marxismo. Nos anos 50, Florestan Fernandes publicara trabalhos fundamentais sobre os métodos de explicação na sociologia. Reunidos emFundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, esses trabalhos já sugeriam a especificidade das orientações teóricas e dos procedimentos interpretativos de cada um dos grandes métodos de explicação: o funcionalismo de Durkheim, a compreensão de Weber e a dialética de Marx.

O fato de que Florestan pusesse lado a lado os três métodos era interpretado, não raro, em meados dos anos 60, como sinal de uma equivocada equivalência dos métodos e da possibilidade de sua eclética mixagem. Alguns, menos precisos, viam aí um hibridismo comprometedor, um ecletismo redutor das possibilidades e alcance dos diferentes métodos. Florestan na verdade sugeria que para cada modalidade de tema e problema há um método apropriado. Alguns podem ser tratados na perspectiva dialética; outros não. E assim por diante. Mas, os métodos não são intercambiáveis ao gosto de quem os utiliza. A definição de um problema de investigação sociológica já pressupõe o método de sua explicação. Em outros termos, a opção por um método já supõe uma visão de mundo, uma modalidade de consciência social.

A preocupação com a "pureza" de um método e com os limites teóricos à incorporação de interpretações de orientação a ele estranhas tinha sentido no ambiente acadêmico de esquerda dos anos 60, marcado por preocupações fundas com as possibilidades históricas do capitalismo subdesenvolvido; embora não tivesse sentido no clima do desenvolvimentismo híbrido dos anos 50, no ambiente político das composições de convivência pacífica entre as oligarquias e os empresários industriais próprias do juscelinismo. A necessidade de pensar sociologicamente um momento histórico aberto sobre possibilidades polares e antagônicas (Fernando Henrique Cardoso termina sua tese de livre-docência sobre Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômicoperguntando: subcapitalismo ou socialismo?) não permitia hibridismos conceituais, muito comuns na época. Florestan Fernandes não era, obviamente, um eclético. Basta ver o tratamento que dá a diferentes temas em diferentes momentos de sua obra: os procedimentos interpretativos adotados em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento são substancialmente diferentes dos que foram adotados em A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá.

É o que explica que os assistentes de Florestan Fernandes tenham organizado seu seminário sobre O Capital semconvidá-lo e tenham feito uma leitura metodológica do livro numa linha bem diversa da que ele percorrera emFundamentos Empíricos. Eles, de certo modo, propunham que se escapasse do Marx interpretado e codificado, fortemente capturado por dogmatismos políticos ou, no caso da sociologia, um Marx de certo modo reduzido a um diálogo forçado com as sociologias, como autor de um sistema sociológico a mais. Sua proposta era, no meu modo de ver, a de uma volta ao Marx marxiano e, portanto, o Marx do diálogo crítico e criador com os autores de sua época. Um Marx criticamente aberto à tarefa sociológica de situar historicamente diferentes interpretações para poder dialogar com elas e superá-las.

Aquele foi um momento de purificação de idéias, pois havia muita imprecisão interpretativa na análise da sociedade brasileira, uma sociedade que claramente se encontrava numa encruzilhada histórica. Para mim, ter esse debate ao meu alcance em aulas, artigos e livros foi fundamental. Eu estava começando a trabalhar com um mundo que os equivocados diziam ser feudal, o arcaico a ser inevitavelmente superado pelo capitalismo puro da teoria, que muitos supunham ser o capitalismo das relações sociais reais. O que havia, mesmo, era uma realidade brasileira rica de indagações, contradições e exigências de interpretação. O debate na USP criava o quadro de referência para discutir essas questões. Meu trabalho foi, portanto, não apenas um trabalho de pesquisa, mas uma experiência de pesquisa fundada em um debate teórico. Quando estava no campo, por exemplo, pensava teoricamente aquilo que observava, o que foi muito importante para mim.

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