Memória e vida cotidiana
Algo que marcou muito minha infância foi uma história que minha mãe sempre contava. Minha mãe, uma mulher muito religiosa - primeiro católica, depois convertida ao protestantismo -, sempre teve medo de que eu me tornasse um subversivo, um comunista; de que eu, eventualmente, me envolvesse com grupos que poderiam ser eliminados pela polícia por razões políticas. Aquilo sempre me inquietou demais, porque não tinha muito sentido. Eu não conseguia ver os perigos que ela via. Sou de uma geração que viveu a chegada, na região do ABC, de dom Jorge Marcos de Oliveira, um bispo politizador por excelência. Apesar de não estar vinculado diretamente à Igreja Católica, pois eu era membro da Igreja Presbhiteriana e, portanto, calvinista, aproximei-me de dom Jorge várias vezes. Desenvolvi atividades com ele, aprendi muitas coisas. Minha mãe se preocupava demais com essa aproximação.
Depois fui descobrindo que por trás do medo de minha mãe havia uma memória: a memória da repressão policial do Estado Novo, na região do ABC, contra os trabalhadores daquela área. O ABC foi a região mais esquerdista do Brasil, dos anos 30 aos anos 50, e São Caetano, em particular - meu foco de interesse -, teve o maior reduto de comunistas de toda a América do Sul, formado por trabalhadores imigrantes, geralmente espanhóis, operários das fábricas. Muitos foram presos no rastro da chamada Intentona de 1935. Houve grande repressão em Santos e no ABC, mortes, desaparecimentos, deportações. O medo de minha mãe era a forma assumida pela memória dessa violência, uma memória de silêncios e recriminações. Em 1947, o Partido Comunista elegeu, sob uma outra sigla, um prefeito e a maioria dos vereadores da Câmara Municipal de Santo André, que abrangia toda a região, menos São Bernardo. Foi o único município do Brasil em que isso aconteceu, e todos foram cassados no dia da posse. No ato da posse, a polícia já estava esperando para que eles não assumissem seus cargos.
Essa região é um lugar onde o escamoteamento do fazer história é muito nítido. Não é que as pessoas não saibam o que estão fazendo: elas têm medo de dizer o que fazem, o que são, o que querem. Foi por essa razão que resolvi investigar intensamente esse tema. Fui descobrindo que, justamente por ser uma região à margem, é o subúrbio da cidade, ali se desenrolava, num mesmo espaço e em diferentes épocas, não uma mesma história, mas várias histórias. Há uma história durante o período colonial, uma história de escravos, de caipiras mestiçados, de quilombos, de revoltas, na época em que todo o bairro antigo estava centralizado na Fazenda de São Caetano, dos monges de São Bento, que se estende pelo período imperial até a criação do núcleo colonial de São Caetano. O núcleo trouxe para a localidade os imigrantes italianos, dos primeiros a chegarem a São Paulo, os colonos para a lavoura de jardinagem que as elites queriam implantar à beira da ferrovia. Posteriormente, há esse período mais recente, da industrialização, da classe operária, dominado essencialmente pelo medo, algo muito diferente do que nas regiões mais centrais da cidade, nos bairros ricos.
A partir dessa perspectiva - perspectiva de quem está à margem do que é dominante, à margem de quem decide -, estou tentando observar o conjunto da sociedade. Subúrbio é o primeiro volume desse trabalho. Em seguida, será lançado o terceiro volume, com vários episódios sobre o tema do medo, decorrente de um clima de repressão muito acentuado. A cultura do subúrbio é repressiva. Ela é politicamente repressiva. As pessoas pagaram altíssimo preço para viver, trabalhar e sobreviver nessas regiões. O que minha mãe me contava era a memória de quem sobreviveu à repressão, mas não ao medo. Ela própria não estava envolvida, mas outras pessoas estavam, amigos, vizinhos, conhecidos.
Estou estudando até mesmo aspectos rituais desse medo, sempre em relação a São Caetano. O medo produziu, no limite, ritos sacrificiais no seio da população, em episódios trágicos, como um parricídio ocorrido num dia de Natal. Escolhi São Caetano porque havia uma boa diversidade de ocorrências sociologicamente ricas e boas informações disponíveis nos arquivos e na tradição oral. A documentação é pouca, mas muito rica. Resolvi fazer este recorte espacial e acompanhar o processo de constituição da sociedade moderna, urbana, cotidiana, a partir desse ponto de referência. Desde o período colonial, o lugar já apresentava uma situação extraordinária, por ser uma fazenda e um bairro dependente da fazenda, não uma fazenda de tipo clássico, estereotipada, mas uma fazenda de uma ordem monástica.
Os beneditinos tinham preocupações humanísticas, inclusive em relação aos escravos. E é entre os escravos da Fazenda de São Caetano que por volta de 1863 há uma pequena revolta que motiva os monges a reverem a escravidão no interior da Ordem, em todo o Brasil. Um monge visitador do Rio de Janeiro vem para São Caetano fazer uma inspeção a propósito do que aconteceu. O problema é levado ao Capítulo Geral em Salvador, que se reunia uma vez a cada dois ou três anos, e é lá que a Ordem de São Bento decide por aquele que será o modelo de extinção da escravidão no Brasil, adotado posteriormente pelo governo, um modelo de extinção gradual. Primeiro, seriam libertadas as mães que tivessem um determinado número de filhos, depois as crianças, e assim por diante.
No dia seguinte à promulgação da Lei do Ventre Livre, a Ordem de São Bento promove a abolição da escravidão em suas fazendas em todo o Brasil, libertando, num ato súbito, quatro mil escravos em todas as suas fazendas. Esse movimento foi decorrência de um gesto de rebeldia, uma revolta simples em que os escravos chegaram para os monges e disseram que não iriam mais trabalhar no que os monges queriam que eles trabalhassem, uma fábrica que havia na região. Essa fábrica, que existia desde 1730, está sendo objeto de um programa de escavação arqueológica do Museu Paulista. Os escravos disseram aos monges que queriam ter sua própria casa no campo, trabalhar na roça, e assim fizeram. Em seguida, o governo imperial desapropriou a fazenda e transformou-a em um núcleo colonial, e um dos primeiros acontecimentos deste período foi uma revolta de colonos contra a proposta do regime de assentamento proposto.
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