Por uma sociologia da vida cotidiana
ESTUDOS AVANÇADOS -Vamos passar a um temário que tem caracterizado sua carreira intelectual. A partir de um certo momento desse percurso, você passa a se dedicar a estudos que se poderiam subordinar, lato sensu, à expressão "sociologia do cotidiano". Gostaria que você dissesse alguma coisa sobre esta verdadeira vocação de estudos: quando começa, quais suas motivações, que relações tem com a tradição sociológica da USP ou em que medida inova essa mesma tradição e, sobretudo, que relações tem com todo um movimento de história nova, história das mentalidades, que a partir dos anos 70 tende a substituir a história das estruturas impessoais?
J. S. M. - Minha preocupação com a vida cotidiana e com a possibilidade de uma sociologia da vida cotidiana está diretamente ligada a uma característica importante da sociologia na USP, em especial no grupo de Florestan Fernandes, que é de fazer uma sociologia de preferência não-amarrada em questões estruturais, institucionais.
O livro de Florestan sobre a A Integração do Negro na Sociedade de Classes, sua tese de cátedra, é um trabalho que solicita, amplamente, que se lide de maneira mais sistemática com a questão do cotidiano, do imediato, do fenomênico. De certa maneira, esse tema já estava proposto ali, e em vários outros trabalhos de diferentes autores. Os trabalhos de Marialice Mencarini Foracchi e de Octavio Ianni, e até um pequeno trabalho de Fernando Henrique Cardoso sobre Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, posterior a sua saída da universidade, já indicam a importância de começar a refletir sobre esse problema.
Em 1975, comecei a dar um curso de Sociologia da Vida Cotidiana, na USP. Lembro claramente que, naquela época, Luiz Pereira, que estava bastante longe dessas preocupações, disse: "Esta é uma proposta impertinente". Foi o comentário que ele fez quando apresentei a proposta do curso ao conselho departamental. Mas a verdade é que justamente nos anos 70, não só no Brasil mas em outros países, o cotidiano começou a dominar o processo histórico. Os mecanismos de reprodução das relações sociais, mecanismos de escamoteamento das possibilidades históricas da sociedade, passaram a dominar os processos de produção do novo e das possibilidades de ruptura inovadora da vida social. A rebelião juvenil de 1968, em vários lugares, nos colocou em face da nova importância histórica da vida cotidiana e suas contradições.
Essa importância aparece nos trabalhos de diferentes autores, em diferentes lugares, com enfoques variados, como por exemplo os meios de comunicação de massa, os modernos mecanismos de manipulação da opinião pública, entre outros. Na verdade, o problema era mais complicado porque não se limitava ao âmbito da formação da sociedade de massas, mas interferia efetivamente nos mecanismos miúdos de vida de amplas parcelas da população que não estavam propriamente mergulhadas nesse mundo novo, manipulado pela engenharia da comunicação.

Nos Estados Unidos também houve essa preocupação em grupos de esquerda, mas não foi uma preocupação eficaz. Os americanos não produziram grandes e fundamentais trabalhos sobre o assunto. Em compensação, havia a tradição fenomenológica, sobretudo do interacionismo simbólico de Blumer, dos descendentes teóricos de George Mead, pessoas que estavam fazendo uma sociologia que trabalhava com o cotidiano embora não pretendesse ser uma sociologia da vida cotidiana. A figura mais importante nesse movimento foi Erving Goffman, com os trabalhos da chamada dramaturgia social. Mais recentemente, destacou-se Harold Garfinkel e a engenharia manipulativa da sua etnometodologia, que tem sugestões metodológicas importantes.
Tentei reunir essas questões - aquilo que poderia ser reunido - numa perspectiva dialética, tentando trazer para uma reflexão dialética a preocupação com a vida cotidiana, perspectiva de Henri Lefebvre, de Agnes Heller. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, por esse caminho não me aproximo da história das mentalidades, mas me afasto dela. Recentemente, escrevi um comentário crítico a um texto de Vainfas, para publicação na Revista do Museu Paulista, em que digo que ele se equivocou ao tratar como expressões de um mesmo fenômeno a vida privada e a vida cotidiana. Nos termos da história das mentalidades esses "conceitos" são considerados equivalentes e intercambiáveis. Na perspectiva de uma sociologia da vida cotidiana, são distintos e expressões de realidades substantivamente diversas.
A vida cotidiana é, num certo sentido, a negação da vida privada, e não se restringe a aspectos que Lê Goff e Duby enumeraram a respeito de usos e costumes dos povos. Eles lidaram com a questão do cotidiano a longo termo. A vida cotidiana, na perspectiva sociológica, é um fenômeno muito recente, que ganha corpo de maneira assim dramática após a Segunda Guerra Mundial. Está ligada ao aparecimento da cotidianidade, que não se confunde com a vida cotidiana. Quer dizer, o aparecimento da cotidianidade é a transformação da realidade social numa realidade de manipulação, de escamoteamento, de alienação moderna, alienação levada ao extremo de suas possibilidades, de mistificação da vida. Estou trabalhando com isso porque esses mecanismos também estão muito presentes na sociedade brasileira há algum tempo.
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