Releitura de Marx: a multiplicidade do tempo presente
ESTUDOS AVANÇADOS - Você poderia historiar, um pouco, o momento em que sua atenção foi solicitada para a presença da escravidão ainda viva no Brasil contemporâneo?
J. S. M. - Comecei a me preocupar com a possibilidade de que isso podia estar acontecendo no momento em que, com a ditadura, tornou-se necessário refazer alguns caminhos no conhecimento do que é o Brasil. Muitos de nós passamos por esse desafio. As nossas certezas de 1963 se tornaram as nossas incertezas de 1964. Todos passamos por esse processo, de diferentes maneiras, em diferentes âmbitos da produção do conhecimento.
Era necessário rever os fundamentos das velhas certezas agora incerta. Havia muito de insuficiente, precário, no conhecimento que se tinha. Uma das coisas que fiz e promovi entre alunos de pós-graduação foi a releitura de Marx. Ficou evidente que a leitura das obras de Marx, que muitos alardeavam, era mais "cultura de corredor" da universidade do que de sala de aula. Tanto Florestan Fernandes quanto Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Marialice Foracchi, e mesmo Maria Sylvia Franco, as pessoas que mais trabalharam com Marx, de maneira nenhuma sucumbiram às concessões de natureza ideológica e, por isso mesmo, nunca foram benquistos pelas esquerdas em geral. Alguns continuam não sendo, porque não estão perfilhando as concepções da esquerda institucional.
No caso do grupo de Florestan, a preocupação era com a questão metodológica na obra de Marx, o que continuou na minha geração. Os professores do seminário d'O Capital já estavam aposentados desde 1969. Em 1975, decidi que era hora de rever algumas certezas e de fato propor uma leitura séria de Marx a alunos de pós-graduação. Iniciei, então, um seminário sobre a obra de Marx, realizado todas as sextas-feiras, durante 13 anos, no departamento de sociologia da USP.
A leitura de Lefebvre veio na seqüência do seminário de Marx. Lemos praticamente toda a obra de Marx, inclusive relendo algumas coisas, e foi possível descobrir temas, questões, procedimentos e orientações que estavam totalmente esquecidos, que haviam sido deixados completamente de lado pelo discurso esquerdista dominante. Por exemplo, a enorme importância metodológica dos Grundrisse em relação a O Capital. Os Grundrisse, para um país subdesenvolvido, periférico, são muito mais importantes do que O Capital. O Capital é uma obra inacabada, e os Grundrisse são rascunhos que tocam em temas que são os nossos temas, temas da diversidade dos nossos tempos históricos, diferentes do que acontece na Europa, onde tudo tende para um tempo histórico relativamente homogeneizado, apesar dos monumentos e das evidências de uma temporalidade que não é a do presente.
No nosso caso, a mistificação é diferente, a impressão é a de que não existe história. Aqui, todos somos modernos. Todos tomamos coca-cola, comemos hambúrguer, pensamos do mesmo jeito, vemos as novelas da Globo. Quer dizer, essa é a suposição geral. Mas na verdade, as sociedades latino-americanas têm uma diversidade real de tempos históricos muito maior do que somos capazes, como intelectuais, de supor. OsGrundrisse de Marx ajudam a pensar essa diversidade de tempos históricos que não são residuais; o importante em Marx está nisso. Para ele, essa diversidade de tempos está ligada a uma certa concepção de história, de transformação, mas não se trata de tempos residuais. São tempos contemporâneos convivendo simultaneamente.
Há uma tese da maior importância na obra de Marx, especialmente no chamado Capítulo Inédito de O Capital, que Lefebvre retoma e transforma no fundamento de sua obra: trata-se da preocupação com o desencontro entre reprodução e produção de relações sociais. Ou seja, essa multiplicidade de tempos presentes, no processo histórico, implica em que a sociedade se reproduza continuamente, além de produzir o novo continuamente. Portanto, o processo histórico é um processo de desencontro entre o que se quer transformar e o que se quer preservar, é este o processo contemporâneo. O contemporâneo não é apenas a promessa do destino, da transformação, do futuro.
O fazer história não é optar utopicamente, ideologicamente, por um modelo de sociedade que seria a sociedade do futuro. É mergulhar fundo nesse conflito de tempos, descobrir nas relações reais e desencontradas as novas possibilidades sociais e realizá-las. Num país como o nosso, a própria idéia de conflito não é apenas de conflito entre classes. É conflito entre classes, entre etnias, entre grupos sociais que não estão configurados como classe, que estão mergulhados em tempos que se desencontram. Mesmo numa cidade como São Paulo, tem-se folia-de-reis, folia-do-divino. Resquícios? Recriações para dar sentido no urbano ao que o próprio urbano e o fabril não revestem de sentido. No caso da folia-do-divino, que existe na periferia, em São Bernardo e Osasco, há a presença de um forte elemento da utopia milenarista de Gioacchino da Fiore, base das concepções revolucionárias do tempo histórico.
É preciso, então, aprender a fazer uma etnografia dessa diversidade de tempos históricos. Descobrimos que a história se anuncia nesse desencontro, e não nas utopias gratuitas. Se aguçamos nossa sensibilidade para perceber essas coisas é possível ver que, ao contrário do que em geral se assume e se diz ideologicamente, o capitalismo não gesta apenas o futuro moderno, tecnologicamente avançado. Ele gera isso e, ao mesmo tempo, o seu contrário.
Quando fui desenvolver minha pesquisa na Amazônia, em 1977, já munido dessas informações e orientações, fui justamente numa área de fronteira em que, supostamente, o capital estava implantando sua racionalidade mais acabada e mais moderna. E de fato ele estava, mas a um preço humano e social tremendo, da devastação e da destruição de grupos sociais, de grupos indígenas e de grupos camponeses. Destruição de relações sociais e, ao mesmo tempo, gestação de trabalho escravo. Curiosamente, ninguém mencionou este aspecto, a não ser dom Pedro Casaldáliga, em sua famosa Carta Pastoral de 1971. Quando se começa a observar a realidade amazônica desse período (dois terços do território brasileiro), descobre-se que quase todos os grandes grupos nacionais e multinacionais mais sofisticados, grupos de ponta no processo de reprodução ampliada do capital em plano mundial, estavam profundamente envolvidos na prática da escravidão. Ou seja, essas duas coisas estavam juntas e não separadas como sugeria o marxismo vulgar.
Rosa Luxemburgo, no livro Acumulação de Capital, também observou essas questões. Marx havia prestado atenção nisso nos Grundrisse, mas não em O Capital. Em O Capital ele enxugou o modelo de capitalismo, transformou-o numa quase abstração. O desafio é, portanto, tentar entender como essas coisas rotuladas de modernas e arcaicas na verdade não são opostas, nem caminham separadas, mas caminham juntas, uma sendo necessidade da outra, numa tensão, numa luta, constante. Uma reproduz e recria a outra, e vice-versa, recriando, portanto, estilos de violência profundamente enraizados numa restauração nociva e negativa do arcaico.
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